OBSCURIDADES ESPIRITUAIS EM FILME REFLEXIVO
 

 

06 de agosto de 2007

As primeiras imagens de Maria (Mary; 2005), o novo filme rodado pelo norte-americano Abel Ferrara, se passam na escuridão, o espectador não vê direito o que está acontecendo em cena; acresce a isto a câmara e a montagem nervosas e uma fragmentação do espaço e dos objetos que se movem no plano (fragmentação que impede o observador de ver o todo, só algo que parece ser um braço ou uma perna ou movimentos indistintos no escuro). Ferrara exacerba sua experimentação cinematográfica em Maria; mas aquilo que era um pouco uma indecisão amadorística no curioso Olhos de serpente (1993), interpretado pela cantora Madona (não confundir com o filme homônimo do também norte-americano Brian De Palma rodado em 1998), ou mesmo no elaborado gangsterismo de Os chefões (1996), se converte num exuberante exercício de rigor formal em Maria. Pode-se dizer que Ferrara chega agora a seu ápice; no meio fílmico americano, sempre tão voltado para os interesses comerciais e um olhar mecânico sobre o mundo, é notavelmente surpreendente a ausência de concessões ao público a que se entregou Ferrara para fazer sair do forno uma obra profundamente pessoal. Maria é, de certa maneira, a resposta elaborada e intelectual à existência de um filme como A paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, um típico fenômeno da indústria; até na pintura do diretorzinho do filme dentro do filme em Maria Ferrara parece espinafrar as declarações atoleimadas de Mel.

Maria faz um pouco este diálogo dialético com a indústria do cinema erigida a partir da América, mas sua verdadeira grandeza fílmica, aquilo que o alça a um dos filmes desta década, abrindo para Ferrara as portas duma  autêntica obra de arte, é outro diálogo. O diálogo que Maria mantém com o espiritualismo cinematográfico, as discussões sobre a fé que mestres do cinema do espírito, como o dinamarquês Carl Theodor Dreyer, o francês Robert Bresson e o sueco Ingmar Bergman, devassaram com amplitude; são estas questões que Ferrara vai buscar, com seu jeito mais virulento, na sociedade contemporânea. O argumento inicial de Maria nasce da visão duma atriz que acabou de fazer o papel de Maria Madalena numa produção cinematográfica internacional; esta atriz, em magnífica interpretação da francesa Juliette Binoche, não logra desimpregnar-se da personagem e, permanecendo no local das locações, uma Jerusalém conflituada por uma eterna guerra étnico-religiosa, mergulha num misticismo tão desorientador quanto obscuro, e é nesta desorientação obscura desta figura que Ferrara topa a acuidade de seu estilo de filmar. Poucas vezes no cinema o obscuro foi tão bem e tão contundentemente filmado, pois é um obscuro que indaga e reflete e não aquele obscuro que nasce da incompetência de filmar e pensar.

No momento em que entra em cena o jornalista vivido por Forrest Whitaker e faz sua cobertura do caso do filme, entrevista com o diretor, ouvir a atriz por telefone, repercussões públicas das sessões, opiniões de entendidos religiosos, Maria se assemelha um pouco a um documentário sobre fatos culturais. O viés dos dramas da vida privada do jornalista (seu casamento que se conturba com o envolvimento no caso do filme, o nascimento adoentado de seu filho) estimula os embates internos de uma narrativa que aspira a ser uma reflexão sobre a religião hoje e sobre a forma como o cinema pode apropriar-se do tema. Diferentemente das formas mais digestivas e humoradas de discutir as ligações do cinema com a vida como o faz Saneamento básico, o filme (2007), do brasileiro Jorge Furtado, (que já começa divertindo-se com a frase dita por Paulo José: “o cocô da comunidade”), Maria é pesado, duro, até antipático na maneira como recepciona a anedota inicial da entrevista do diretor de cinema sobre “fazer o filme de Jesus porque lhe vai render alguns milhões de dólares”. Mas é uma obra necessária nestes dias de pura vulgaridade.

Meio por acaso, certos climas de certas cenas de Maria me levaram a pensar em Caché (2005), do austríaco Michael Haneke; não sei se a presença de Juliette BInoche no filme de Haneke influenciou esta minha percepção, mas creio que aí vai algo mais, o rigor e a invenção, uma crueldade estética que se insinua nas entre-imagens ou no escuro-imagem. Ocorre que Ferrara vai mais além  que Haneke e aprofunda sua investigação humana com extrema perfeição.

Por Eron Fagundes

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