14
de março de 2006
O realizador norte-americano Woody Allen filma muito: um filme por ano há quarenta anos. Diante disto, cada lançamento de uma obra sua refaz a polêmica: segundo alguns, ele se repete interminavelmente, é sempre o mesmo filme que o cineasta está fazendo; seus admiradores mais fiéis saem em sua defesa, catando pontos de diferença entre um filme e outro. Outra característica polêmica de Allen é seu amor pelo cinema do espírito praticado na Europa: uns o vêem como um artista pessoal, outros só enxergam em suas narrativas pastiches de películas européias (atualmente, parece que a fase de Allen se circunscreve a rodear a sombra do diretor francês Eric Rohmer).
Ponto final (Match point; 2005) é a nova vitrine para se levantarem estas discussões: repetitivo, imitador, ou criador genial? Toda crítica de uma obra de arte envereda cedo ou tarde para a futilidade. O observador de arte (este comentarista certamente) é um fútil e não deve envergonhar-se da gratuidade de propósitos de seus conceitos: é inevitável. Somos como as próprias personagens dos filmes de Allen, intelectuais inquietamente frívolos e talvez incapaz de aprofundar uma discussão cinematográfica.
Dentro da questão diferença-repetição, Ponto final é tão igual quanto os demais trabalhos do diretor nova-iorquino: tramas sentimentais postas em diálogos precisos que parecem, não fossem certas asperezas, nascidos da ironia intelectual de Eric Rohmer. Mas difere porque Allen se aprofunda dramaticamente, sem lembrar excessivamente o sueco Ingmar Bergman e o italiano Michelangelo Antonioni, como ocorria em Interiores (1978). Num certo sentido, é um drama pessoal que responde ao nervo central do filme anterior de Allen, Melinda e Melinda (2004), onde Allen discutia a estética do drama e da comédia por uma forma dialética.
Curiosamente, em Ponto final a principal influência de Allen não é cinematográfica mas literária: o escritor russo Fiódor M. Dostoievski, cujo livro Crime e castigo (1866) a personagem de Jonathan Rhys-Meyers está lendo no início do filme; para quem lê Dostoievski, a cena quase ao final em que o assassino dialoga com os fantasmas da velha e de sua amante grávida assassinadas é a transformação em imagens de certas cenas místicas de romances de Dostoievski. A culpa dostoievskiana é o grande assunto de Ponto final.
O roteiro de Ponto final guarda afinidades com a história de Um lugar ao sol (1951), uma obra-prima de George Stevens extraída dum romance de Theodore Dreiser: a moça rica, a moça mais pobre e o arrivista social que, num descuido, deseja a pobre e a engravida, desejando depois matá-la para livrar-se do problema. Mas o clima, como referi, deve mais a Dostoievski do que a qualquer outro; Allen visitara antes as mentes dostoievskianas num de seus filmes mais celebrados, Crimes e pecados (1989), e na verdade papai Dostoievski é uma parede sobre qualquer artista do espírito (no cinema basta lembrar o que lhe deve um cineasta tão severo e despojado como o francês Robert Bresson).
Ponto final é um belo filme que começa pela curiosa direção de atores (Allen é especialmente eficaz em caracterizar o estranho tipo de Scarlett Johanson, a “moça com brinco de pérola” no filme de Peter Weber que tratava da arte do pintor holandês Vermeer). Preenchendo o drama com sons de ópera e movendo sua câmara com alta noção do espaço cênico, Allen faz de Ponto final mais um exercício de refinamento estilístico que cai bem nestes tempos de grosseria nas salas de cinema
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Por
Eron Fagundes