O ENFADO DA TÉCNICA: DE KUBRICK AOS WACHOWSKI

3 de Junho de 2003

Os aparatos tecnológicos sempre estiveram a serviço do cinema americano. Ninguém como eles sabe servir-se dos avanços da tecnologia visual para construir uma visão formalista do mundo. Um cineasta americano típico deve saber hipnotizar-nos com os encantos da imposição visual; algo que nos faça esquecer o roteiro furado e artificial e a superficialidade de caracteres e idéias.

Aí está The Matrix Reloaded (2003), dirigido pelos irmãos Larry e Andy Wachowski. É bastante superior ao primeiro episódio da trilogia: desenvolveu uma tecnologia visual mais arrebatadora –as maiores trivialidades, como correria de carros e motos e destruição de cenários, adquirem os contornos dum balé cibernético-cinematográfico que não deixa indiferente até aquele espectador que se recusa a mergulhar na mistificação do filme. É esta tecnologia sofisticada que acaba por soterrar em alguns momentos as fragilidades da história ridícula e pretensiosa; o filme convida a esquecer todos os seus problemas para deitarmos ao som e à imagem de sua hipnose técnica; aí variará de espectador para espectador aceitar a precária experiência proposta pela realização.

Na era da informática, os irmãos Wachowski injetaram em seu tema a possibilidade de se criarem realidades simuladas por computador (a dita Matrix gerenciaria este controle) em que as máquinas dominariam os seres humanos. (Um dos problemas é que os três filmes são incompletos, deveriam ser vistos como um só, se não fossem os interesses comerciais dos produtores; quando chegar a terceira parte, espera-se que alguém se abalance a unir as três partes em seu todo, pois é o que na verdade o filme é, um só.).

Formalmente, o filme se vale das conquistas digitais para impor-se visualmente: a multiplicação do indivíduo do vilão batido pelo mocinho restaura o velho faroeste no centro da atual cibernética hollywoodiana. Matrix talvez quisesse decretar o fim do humanismo cinematográfico: a era do tecnicismo inconseqüente. Nosso olhar se perde em visões da mais pura irrealidade. Se Simone (2002), de Andrew Niccol, tem os pés no chão para enxergar a fantasia digital, Matrix alça vôo livre, como uma criança: que é bem assim, uma criança, que Hollywood quer seus espectadores.

Tudo aquilo que é dado como função de uma técnica exuberante de filmagem em filmes como 2001, uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick, ou Apocalypse now (1979), de Francis Ford Coppola perde o sentido diante das facilidades de The Matrix Reloaded; a exasperação do formalismo de Kubrick e de Coppola, cujos exageros permitiram em sua época uma discussão nas fronteiras do revolucionário e do vazio (a passagem dos anos caracterizou indelevelmente os aspectos revolucionários destas produções), se concentram em Matrix num único tópico –o vazio formal alia-se com o vazio temático.

Em 2001 não é a história de Arthur Clarke o principal trunfo, mas o gênio de filmar de Kubrick; pergunta-se: que seqüência de Matrix (seja o I, seja o II) poderia mergulhar o assistente num êxtase hipnótico como aqueles travellings no espaço (ou os corredores de luzes e desempenhos fotográficos –coisas para cinéfilos empedernidos que os observadores ainda travados por sua formação literária terão dificuldades de perceber) criados por Kubrick? Quando ouço as pessoas de hoje dizerem que Matrix é um filme de culto e que há um “aprofundamento das questões filosóficas” no segundo episódio, cuido que cada geração deve ter os filmes de culto e a filosofia que merece.

No meu tempo (é verdade, jovens “matriqueiros”, estou ficando velho) os nossos filmes de culto eram obras como Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, e Terra de ninguém (1974), de Terence Mallick; e não nos referíamos a questões filosóficas profundas para definir os espetáculos de Hollywood, mesmo aqueles de que gostávamos, estávamos cientes de sua posição de entretenimento.

por Eron Fagundes