UMA VOZ PODEROSA DO CINEMA LATINO-AMERICANO
 

 

 
Entre em contato

06 de setembro de 2005

O cinema feito politicamente, aquele em que o cineasta maneja a câmara e a montagem como se fosse uma arma, como se o diretor fosse um guerrilheiro da década de 60 do século XX, este cinema, quando nos pomos hipoteticamente a pensar sobre a possibilidade de sua ressurreição, nos parece tão anacrônico e improvável hoje em dia que balançamos a cabeça. O cinema autenticamente político estaria morto nesta época de indiferenças sociais. Senão quando, ressurge em cena um realizador que nunca abdicou de suas concepções revolucionárias, a revolução social e a revolução cinematográfica: o argentino Fernando Ezequiel Solanas é um remanescente do artista que resiste a todas as tentações para permanecer fiel a suas origens. Eis o filme: Memória do saqueio (2003) é um documentário que abre o tom da poderosa voz latino-americana de Solanas.

O cineasta é intensamente devastador em suas análises do caos social na Argentina na década de 90. Suas imagens são grandiloqüentes e criativas, remetendo um pouco a um estilo de filmar gerado na cabeça de alguns homens de cinema da década de 60, especialmente o brasileiro Glauber Rocha, a quem Solanas dedicou há muitos anos seu filme Sur (1987). Solanas não desdenha a força poética do cinema; mas seu documentário é o de um repórter-pensador, que em momento algum mistifica a realidade em nome da arte. Elegendo o caos como fonte de uma criatividade estética peculiar (os movimentos de rua são namorados sem pudores pela câmara de Solanas), o diretor retoma a virulência formal e temática de seu clássico A hora dos fornos (1966/1968); se num filme pouco conhecido do início do decênio de 90, A viagem (1992), Solanas já profetizava o estado caótico a que chegaria o país, em Memória do saqueio ele tem a oportunidade de girar sua metralhadora cinematográfica para uma realidade que se apresenta indócil à sua visão: sua impiedade para com a ganância dos políticos e dos grandes capitalistas nacionais e internacionais é tão feroz e sem concessões quanto a forma crua com que certos rincões extremamente miseráveis e famintos são expostos diante das câmaras; Solanas é extremamente hábil para ligar as duas pontas, os muito miseráveis e aqueles que se beneficiam desta miséria chegando-se ao poder para enriquecer mais ainda.

Solanas é um sobrevivente da era do pensamento político. É uma presença incômoda de artista no tecido social. Mesmo que ao fim de sua memória do caos ele aponte para uma esperança de vitória baseada na força alegre e voraz do povo, o filme é angustiantemente niilista: como ter esperança diante do desnutrido menino que mal respira enquanto os tubarões sorriem em suas viagens ao estrangeiro? Os assassinatos (genocídio social) por gestos e sem armas dos milionários e seus asseclas políticos são o alvo deste potente documentário, que, juntamente com Um filme falado (2003), do português Manoel de Oliveira, e O clã das adagas voadoras (2004), do chinês Zhang Yimou, recoloca, na temporada cinematográfica de 2005, ao espectador a possibilidade de que um grande filme ainda acontece: às vezes.

Por Eron Fagundes