O CINEMA NÃO É UMA ARTE
 

 

16 de maio de 2006

Missão impossível III (Mission impossible III; 2006) é um filme de ação, um filme de ação é um filme de movimentos: tudo o que está em cena, dos atores aos outros objetos cênicos, deve mexer-se constantemente para não dar trégua ao olho do espectador; movimenta-se igualmente uma montagem alucinada como requer uma “intriga internacional” made in Hollywood; é móvel igualmente a fotografia do filme e seus ângulos que se cruzam no entrelaçamento duma montagem vertiginosa. Estamos diante da fúria de um filme sem outras intenções que não comerciais; sua história é um blefe tão patético que chego a surpreender-me como é fácil, usando o formalismo do cinema, fazer as pessoas engolirem qualquer tolice. Em defesa de Missão impossível III pode-se dizer que a realização não quer ser mais do que aquilo que é: um retumbante petardo de imagens para edificar o estrelato de Tom Cruise, um canastrão, cuja energia só foi bem aproveitada em Magnólia (1999), de Paul Thomas Anderson, curiosamente um projeto não comercial interpretado pelo astro. O problema não é aquilo que Missão impossível III é: é aquilo em que o querem converter; o problema está com os admiradores ingênuos do filme.

A crítica norte-americana Pauline Kael, em seu ensaio Lixo, arte e o cinema, observava como o cinema pode ter mais a ver com lixo do que com arte, inclusive em filmes respeitados por uma pretendida profundidade de pensamento: a principal vítima da teoria do lixo elaborada por Pauline era 2001, uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick; diz ela do filme de Kubrick e de outro aplaudido filme dos anos 60: “Talvez seja esse ‘arte” toda que impeça tais filmes de ser lixo desfrutável; não são honestamente medíocres, são muito fantasiosos e levam muito a sério suas idéias medíocres.” E há duas frases de Pauline que demonstram como ela suspeita do cinema como arte: “Fala-se tanto hoje na arte do cinema que podemos estar correndo o risco de esquecer que, em sua maioria, os filmes de que gostamos não são obras de arte.” “Em geral, nos interessamos pelos filmes porque gostamos deles, e o motivo pelo qual gostamos pouco tem a ver com o que julgamos arte.”

Será que, seguindo a sugestão discreta de Pauline, podemos admitir que Missão impossível III faz um barulho no vazio e, mesmo assim, nos prende a atenção? As pessoas podem adorar sem culpa um filme como este porque o cinema é feito desta maneira, esta é sua essência: um divertimento popular.

Sabe-se que o diretor americano J.J. Abrams, que dirigiu este terceiro segmento da série, situou o pólo de seu filme longe do virtuosismo técnico do norte-americano Brian de Palma em Missão impossível (1996) e das piruetas formais do chinês John Woo em Missão impossível II (2000): isto confere ao trabalho de Abrams um contato mais direto com a pele do público, claro, as grandiloqüentes inverossimilhanças estão ali, mas são amenizadas.

Ressuscitemos Pauline: o lixo está por toda parte no cinema, nas banais histórias policiais que o francês Jean-Luc Godard subvertia com seus planos de ocasião, nas fotonovelas que muitas vezes forneceram a raiz emocional dos primeiros filmes do italiano Federico Fellini; mas teria Missão impossível III alguma relação com Godard ou Fellini ou ainda com o inglês Alfred Hitchcock cujo estilo é eternamente pasteurizado por estas aventuras internacionais em que o cinema de quando em quando mergulha? Haveria mesmo uma diferença entre a tensão da primeira seqüência de Missão impossível III (esta primeira cena é o clímax trágico da película) e a angustiante e misteriosa cena final de Um corpo que cai (1958), o mais perfeito dos Hitchcock? Talvez não: o cinema não é uma arte, é um espetáculo, pertenceu em suas origens às feiras de variedades e nunca logrou sair inteiramente deste gueto.

Por Eron Fagundes

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