30 de agosto de 2004
Sabe-se
que o filme Moça com brinco de pérola (Girl with
a pearl earring; 2003), de Peter Webber, teve seu roteiro extraído
da ficção escrita pela norte-americana Tracy Chevalier.
Mas na verdade o minucioso rigor estético com que o cineasta
elabora seu jogo de cores e luzes tem uma inspiração
direta: as telas pintadas pelo artista holandês Jan Vermeer
no século XVII. Aquilo que o cinema é antes de
tudo, a beleza plástica da imagem, tem origens na pintura
e depois na fotografia e não propriamente na literatura
(que serve, é bem verdade, um certo suporte narrativo
ao filme).
As
obras cinematográficas que foram à pintura buscar
seu coeficiente de deslumbramento perduram na memória
do espectador. O norte-americano Vincente Minnelli em Sinfonia
de Paris (1950) e o francês Bertrand Tavernier em Um
sonho de domingo (1984) refizeram fotogramas inteirinhos à sombra
dos mestres impressionistas franceses. A perversidade angelical
do renascentista italiano Sandro Botticelli paira sobre as imagens
do maravilhoso Piquenique na montanha misteriosa (1975), do australiano
Peter Weir. Talvez Webber não logre impor seu trabalho
na grandeza destes clássicos, mas, diante da precária
vulgaridade do cinema contemporâneo, seu filme é um
achado.
A
estudada fotografia do português Eduardo Serra capta,
com as possibilidades do cinema, a sensibilidade da mão
pictórica de Vermeer. E a precisão da música
de Alexandre Desplat marca bem o ritmo narrativo. A direção
de elenco é notável; se Colin Firth é de
fato um ator de grande interioridade, a jovem Scarlett Johansson
(que faz sua criada e modelo) exubera no papel da sensível
ingênua e perplexa diante de um universo estranho que se
lhe abre.
Propondo
uma curiosa reflexão sobre a ironia do conhecimento
da arte, o filme estabelece uma relação quase indestrutível
entre o refinado artista comprado pela aristocracia ignara mas
endinheirada da época e a garota analfabeta que revela
um surpreendente olho para a pintura. Um pouco à maneira
de Celeste (1981), obra-prima meio esquecida rodada pelo alemão
Percy Adlon, Moça com brinco de pérola mostra a
atração primitiva que uma empregada pode sentir,
meio obscuramente, por seu patrão intelectualmente superior;
no filme de Adlon, eram as atrações da criada do
escritor francês Marcel Proust nos anos finais dele (curiosamente,
Proust é um admirador que se deleita bastante descrevendo
em suas páginas as pinturas de Vermeer).
O
grande plano fixo do quadro “Moça com brinco de
pérola” na imagem derradeira da realização
de Webber mostra a extrema fidelidade visual de sua narrativa
ao processo estético de Vermeer. É como se houvesse
uma co-direção entre o cineasta e o pintor.
Por Eron Fagundes
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