LIVRO NA TELA: DIFERENÇAS
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04 de outubro de 2004

A narrativa extremamente plástica e espacial do filme de Peter Webber Moça com brinco de pérola (2003) nasce duma fidelidade à essência das imagens do pintor holandês Jan Vermeer, ao mesmo tempo personagem e liame estrutural da realização; o romance escrito pela norte-americana Tracy Chevalier, Moça com brinco de pérola (Girl with a pearl earring; 1999), é despojado, direto e, conquanto muito bem organizado em seus detalhes de época, está muito longe das formas estilísticas de que se vale Webber contando com as sombras da pintura de Vermeer, coisa que a literatura (a não ser em alguns casos: o gênio de Marcel Proust) tem dificuldade de tocar: o romance é uma arte das palavras no tempo e foge-lhe o aspecto plástico que liga a pintura ao cinema.

Debruçando-se sobre livro e filme, o observador se encanta com o aprendizado trazido pelas diferenças que vêm mesmo das opções do cineasta e da romancista, ambos conhecedores de seu ofício. O romance é narrado na primeira pessoa, quem conta a história é Griet, a criada e modelo do artista para o quadro-título; a lenta aproximação de Griet do interior artístico de Vermeer, ajudando-o a achar soluções para seus impasses estéticos, o deslumbramento daquela menina analfabeta com os mistérios daquele homem-pintor, a revolução que uma simples empregada causou numa típica família pequeno-burguesa do interior da Holanda no século XVII, tudo chega à percepção do leitor pelos olhos grandes transformados em palavras que a protagonista vai derramando nas páginas. Assim, a habilidade de Chevalier está principalmente em captar, de maneira sensível e objetiva, a alma simplória de Griet, uma adolescente de dezessete anos que vê as trivialidades de sua vida serem transtornadas pela descoberta de um universo com que nunca sonhara. Webber despreza o uso literário da primeira pessoa; quem conta o filme é a câmara cinematográfica que pinta o tempo todo como se fosse um pincel de Vermeer. No livro o leitor é ironicamente um “espectador” dos eventos revelados pela personagem auscultada por um narrador neste complicado processo da primeira pessoa. No filme o espectador deixa de ser somente um espectador da sala de cinema, metamorfoseia-se em personagem, enxerga a magia do pintor revivido no cineasta pelos olhos grandes da protagonista, é um espectador dentro da tela, um espectador-personagem que, juntamente com Griet, assiste às evoluções do trabalho de um gênio da arte; somos simplórios deslumbrados, como a criada Griet.

Como em toda adaptação cinematográfica de um livro, no filme de Webber topamos com algumas alterações na história ou no modo de contá-la. A ausência da primeira pessoa é significativa: a trama deixa de ser tão explicadinha quanto no romance; os pensamentos de Griet são sugeridos plasticamente no lugar da confessional primeira pessoa. Há certas modificações que não significam muita coisa: no livro, para mostrar a obsessão perfeccionista do pintor, ele exige que a modelo use os dois brincos, embora só um deles vá aparecer no quadro; no filme esta cena é suprimida; no livro é ela quem fura suas próprias orelhas (fura uma e, ao posar, fura a outra por exigência dele), no filme é ele quem fura uma das orelhas dela; estas divergências são indiferentes e certamente estamos diante da necessidade de síntese estabelecida por Webber. Mas outras liberdades do filme para com o livro são reveladoras. Senão vejamos.

O filme se passa num único ano, ao menos é o que é referido: 1665. O livro se divide em quatro anos: 1664, 1665, 1666 (os anos da relação da criada-modelo com o pintor), 1676 (dez anos depois, Vermeer acabou de expirar, a garota está casada com seu açougueiro e tem filho). Ao filme não interessa muito o tempo, que é algo que importa ao romance; o filme volta-se para as relações do espaço cinematográfico, em que Webber se move como se fosse Vermeer espiando pela câmara escura, que é uma ancestral do cinema ao construir retratos feitos de luz.

A alteração fundamental é o fim da narrativa. No romance Griet está atendendo em seu açougue quando Taneke se aproxima (passaram-se os aludidos dez anos e as duas empregadas nunca mais se tinham visto) e lhe fala que a patroa quer falar com Griet: indo a casa, Griet descobre que seu ex-patrão determinara em testamento que os brincos do quadro deveriam ser entregues à sua modelo; é o que a viúva faz, entre constrangida e contrariada. No filme não ocorre nada disto: não se passaram dez anos, não sabemos do destino do pintor e de sua família, é Taneke quem se chega de Griet e lhe passa o embrulho com os brincos. No filme, assim como está, a cena é solta, supreendente, misteriosa. As relações de tempo que há no romance deixam de existir na construção do filme, o aparecimento dos brincos na imagem são signos plásticos tão-somente-- mais do que qualquer enigma temático. Tanto é que a última imagem do filme é um plano que a princípio se fecha sobre a luz de algo que vem a ser o brinco e depois se abre num afastamento de câmara que revela um plano fixo sobre um fundo escuro do quadro de Vermeer que de fato foi o inspirador direto do filme. Estabelece-se então, para quem viu o filme e leu o livro, o conflito entre a obra literária e a obra cinematográfica: a riqueza de breves dados psicológicos de Chevalier e a acuidade formalista de Webber; a profundidade em literatura nasce duma ilusão do texto, esta mesma profundidade no cinema está eivada de questões plásticas e interpretativas (uma angulação, uma iluminação, uma sutileza exigida do ator).

Dir-se-ia que Peter Webber partiu de um guia pictórico que lhe foi dado por Tracy Chevalier e invadiu a sala de pintura de Vermeer. Webber traz a vantagem de que sua arte tem parentesco plástico com a arte de Vermeer. Chevalier logra penetrar mais diretamente na alma de Griet graças ao uso magistral da narrativa na primeira pessoa, recurso distante do cinema; e ao penetrar em Griet, ela está dizendo mais coisas sobre Vermeer.

É verdade que a literatura nunca poderá captar a luz de um brinco. Mas o cinema igualmente terá dificuldades de expor sua narrativa à clarividência amarga de certos parágrafos como este: “Levantei os olhos, e a faca deu um corte fundo na minha mão. Não senti a dor até o momento de perguntar: --De quem estão falando? –E a mulher respondeu: --O pintor Vermeer faleceu.” De que dor está falando Griet, personagem e narradora? A dor física do corte da faca ou a dor moral de que “Há dois meses podia andar pelas ruas de Delft sem pensar se iria encontrá-lo.”?

Por Eron Fagundes