ORAÇÃO POR SPIELBERG
 

 

27 de fevereiro de 2006

Ao norte-americano Steven Spielberg construiu sua base cinematográfica rodando filmes para a aceitação fácil do público: uma comunicação fílmica que abrangesse a chamada grande platéia de cinema. Mas, obtida a marca comercial, Spielberg quer mostrar que sua habilidade de narrador pode servir a causas sérias. De quando em quando seu entretenimento envereda por temas complexos e espinhosos; e como Spielberg (isto quem o afirma é um de seus inimigos estéticos, este comentarista) tem o sentido do cinema à americana, ele engana bem.

Munique (Munich; 2005) é a última novidade de Spielberg depois do fiasco de Guerra dos mundos (2005), todavia acolhido com simpatia pelos spielbergianos natos. O novo Spielberg é um avanço dentro do cinema da puerilidade que Spielberg põe em prática; talvez nunca antes Spielberg tenha atingido tanta dignidade cinematográfica; mas não se pode dizer que seja algo profundo, pois a marca do entretenimento não se desprega tão facilmente da mão de Spielberg. De qualquer maneira, Spielberg filma bem e apresenta uma intrigante tensão política (filmada um pouco como se fosse um filme do inglês Alfred Hitchcock), embora lá pelas tantas ( o filme se estica demais, alternando um certo engenho com lugares-comuns formais e temáticos) o espectador se questione se o formalismo do cineasta não está abafando a urgência do assunto, que é a intolerância racial dos seres humanos a partir da visão dos conflitos entre árabes e israelenses.

Spielberg roda finalmente um bom filme. Mas ainda assim não resisto à polêmica anti-Spielberg que advogo. O eminente crítico norte-americano Roger Ebert escreveu sobre A lista de Schindler (1993), de Spielberg: “O filme tem sido um alvo fácil para aqueles que acham que a visão de Spielberg é muito otimista ou ‘comercial’, ou condenam por transformar as fontes do Holocausto numa história bem contada. Mas todo artista tem que trabalhar com um meio de expressão, e o meio de expressão do cinema não conseguirá sobreviver se não houver uma platéia entre o projetor e a tela. Claude Lanzmann fez um filme muito mais profundo sobre o Holocausto, Shoah, 1985, mas poucos se predispuseram a ficar nove horas no cinema para assistir a ele. Uma das grandes virtudes de Spielberg é a de fazer filmes sérios que unem a arte com popularidade –de transmitir o que gostaria de dizer de uma forma que milhões de pessoas gostariam de ver e ouvir.” Ebert reconhece que Shoah, uma das obras-primas do cinema da década de 80, é muito mais profundo que o filme de Spielberg, que desdenha a profundidade; aí é que está o problema do crítico: sabe que Lanzmann é um diretor de cinema muito mais arguto que Spielberg e todavia advoga a defesa do americano em função de paparicar o espectador; se Ebert me dissesse que Spielberg diz mais coisas e coisas mais agudas que Lanzmann, eu poderia simplesmente discordar, mas conhecer o processo estético de Spielberg e defendê-lo sobre qualquer outro, trata-se duma orientação cinematográfica que não posso deixar de repugnar.

Ainda assim, devo admitir que Munique me envolveu. Talvez a capacidade de ludibriar de Spielberg se tenha sofisticado, chegando a agora a mistificar até seus adversários, como eu.

Por Eron Fagundes

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