14 de abril de 2008
DAo mesmo tempo em que pinga na cidade a enérgica nota cinematográfica de Shine a light (2008), documentário de música assinado pelo norte-americano Martin Scorsese, o observador cinematográfico pode desfrutar de outro tipo de abordagem da cinebiografia de um músico em Não estou lá (I’m not there; 2007), do também americano Todd Haynes. Embora o nome do cantor americano Bob Dylan não seja citado em cena, diz-se que o filme é uma cinebiografia de Dylan; as canções de Dylan preenchem a faixa sonora, os fatos da vida do cantor estão ali, quem chegou a conhecer em dvd o extraordinário No direction home: Bob Dylan (2005), de Martin Scorsese, vai reencontrar declarações e episódios que agora passam a figurar como enxertos para apontar Não estou lá para a figura de Dylan como acontecimento musical dos anos 60 —revemos as críticas ao possível comercialismo do cantor ao tocar acompanhado de uma banda ou as entrevistas onde se questionava o conteúdo de protesto das delirantes canções de Dylan.
Mas na verdade é muito mais uma narrativa inspirada em Dylan do que uma cinebiografia (mesmo que livre) de Dylan. Não é um documentário, embora adote certas coisas da linguagem documental, como o veio jornalístico de uma empostada objetividade logo desarticulada por um andamento fílmico tão complexo quanto confuso na capacidade de passar ao assistente suas intenções finais.
O que Haynes fez foi fragmentar a personalidade de Dylan em fragmentos que sua visão de cineasta tem do músico. Dylan pode ser um cantor negro muito garoto e provocativo, um efeminado cheio de trejeitos e afetação, um pistoleiro cantador da época de Billy the Kid, um cantor fanático religioso tipicamente ianque. Dylan para Haynes pode ser qualquer coisa que queremos. Em Não estou lá é bem possível esquecer que a referência inicial é Dylan e pensar no filme como uma visão tresloucada da América. As características muitas vezes circenses de Não estou lá remetem ao realizador italiano Federico Fellini e seu Oito e meio (1963); há uma cena no filme de Haynes em que a personagem alça um estranho e onírico vôo, pairando na imagem, em vestes negras, como na seqüência de abertura do clássico de Fellini.
Não estou lá é um espetáculo curioso e que merece ser visto; mas acho que se goza melhor a realização se esquecermos seu mote inicial, Bob Dylan. Claro: não quando ouvimos a faixa sonora, pois Dylan é sempre o máximo, mas somente ao acompanharmos as trêfegas e perdidas evoluções da narrativa.
Por
Eron Fagundes