09
de novembro de
2004
Partindo
das motivações interiores de Crime e castigo (1866),
um dos mais célebres romances do escritor russo Fiódor
M. Dostoievski, o realizador brasileiro Heitor Dhalia revela
uma surpreendente mão cinematográfica, em sua estréia
como diretor em Nina (2004), ao ousar captar a atmosfera subterrânea
e soturna das narrativas dostoievskianas. Dhalia toma muitas
liberdades no roteiro que adapta o universo russo do século
XIX para as amedrontadoras e surrealistas ruas paulistanas do
século XXI; como o próprio cineasta define, trata-se
duma paráfrase, não duma adaptação,
isto é, mantém-se a essência dos motivos,
os episódios acabam por interessar pouco. Há muitos
anos o finlandês Aki Kaurismaki rodou sua paráfrase
contemporânea de Crime e castigo (1983), em que havia uma
testemunha do crime a qual conduzia o jogo ético; em Dostoievski
a testemunha é morta juntamente com a primeira vítima,
em Kaurismaki esta testemunha sobrevive para cutucar a culpa
da personagem, em Dhalia não há simplesmente testemunha.
Um
dos elementos-chave da construção do clima de
pesadelo da película é a fotografia a cores de
José Roberto Eliezer, o mesmo que, em A dona da
história (2004), de Daniel Filho, exibia uma luz aberta e extrovertida,
tão carioca quanto possível, tão suave e
paparicante quanto convinha. Em Nina Eliezer apresenta um trabalho
desfocado, desglamurizado, opressivo em suas características
sombrias, fechado, ameaçadoramente interior. A riqueza
da montagem, com a articulação dos cruzamentos
de planos (primeiros planos, planos gerais, angulações
repuxadas, lentes deformantes como a de uma personagem-homem
que late como um cão, planos-labirinto de movimentos inquietos
e perturbadores), complementa esta fotografia que, por uma sutileza
notável, transforma suas cores (o filme é mesmo
a cores) numa proximidade do preto-e-branco expressionista (o
citado filme de Kaurismaki buscava esse mesmo tom visual; seria
Dostoievski um pré-expressionista?).
Roteirizado
pelo diretor e por Marçal Aquino (o mesmo
de O invasor, 2001, novela que gerou o filme de Beto Brant),
Nina é bem a materialização estética
de um Dostoievski pós-moderno, cheio de cor (ainda que
opaca) e fúria (ainda que impotente) em busca dum sentido
que nunca chega. A constante miséria da criatura de Guta
Stresser, em desempenho inesperadamente extraordinário,
e seu confronto com a velha perversa vivida com admirável
precisão por Myriam Muniz vão gerar um desconforto
no espectador que nenhum filme brasileiro recente logra impor;
a cena em que um bando de velhos, da porta de seus apartamentos,
olha acusadoramente para a garota é um instante ímpar
de cinema, que evoca o espanhol Luis Buñuel e polonês
Roman Polanski em seus momentos de pura perversidade.
Um
dos achados do filme, na sua linha de liberar-se do clássico
literário, é expor no final que o assassinato da
anciã pode ser uma fantasia da jovem. Segundo o médico,
a mulher teria morrido do coração; e a rapariga
a resmungar para todos que a matou asfixiando com um saco plástico
(é a primeira versão da narrativa), depois fala
em machadada, logo alude a uma faca --confissões contraditórias.
O cineasta se vale igualmente de recuos no tempo narrativo bem
colocados, revelando domínio de linguagem; por exemplo,
a explicação do sumiço do gato da velha é inserida
na montagem depois que a mulher pergunta pelo bichano, procedimento
idêntico ocorre na seqüência em que se mostra
a travessura da garota com o chá que a velha está a
beber.
Ainda a destacar os quadrinhos de Lourenço Mutarelli,
que aparecem adequadamente como suporte narrativo do filme.
Em
suma, trata-se duma obra fora de padrão, que foge ao
formato industrial de realizações como o citado
A dona da história e Olga (2004), de Jayme Monjardim.
Cabe ao observador vencer a repugnância inicial a certos
laivos maneiristas da realização e desfrutar da
irreverência proposta.
Por Eron Fagundes
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