9
de Junho de 2003
São
poucos os prejuízos que a passagem dos anos trouxe
a uma revisão de Um dia muito especial
(Uma giornatta particolare; 1977), o mais belo filme assinado
pelo italiano Ettore Scola. Estes prejuízos se concentram
na maneira meio suja com que a restauração
atual recriou o estudado tom desbotado da fotografia de
Pasqualino de Santis (neste sentido, mesmo considerando-se
as diminutas dimensões da tela, uma restauração
em dvd como aquela de Laranja mecânica,
1971, de Stanley Kubrick, é bastante mais fiel visualmente);
para o espectador que, no fim dos anos 70, desfrutou da
sofisticação pastel das imagens da realização,
resta apelar para a memória.
Quanto aos demais aspectos, o trabalho de Scola permanece
irretocável em sua capacidade de arrepiar de emoção
o observador de hoje. O realizador começa sua narrativa
com aquela câmara flutuante que se movimenta, com
intimidade, pelas peças do apartamento para ver como
a dona-de-casa acordará o marido e os seis filhos
para o desfile daquele dia histórico em que Hitler
visitará Mussolini em Roma; discípulo do italiano
Michelangelo Antonioni, Scola recusa o plano-seqüência
angustiado e metafísico de Antonioni: o plano-seqüência
em que Antonieta vai despertando sua família, revelador
de um extraordinário senso de espaço cinematográfico
um tanto quanto ausente de boa parte da produção
contemporânea, é outro tipo de plano-seqüência,
íntimo e familiar. A forma meio descontraída,
descritiva, aberta do início do filme vai alterar-se:
à medida que a história avança, e as
intenções de confronto dos protagonistas da
narrativa para questionar o grande dia se esclarecem, os
planos gerais (que resgatam o cenário fascista das
grandes arquiteturas) se alternam com os primeiros planos
fixos (que colocam em cena duas das mais notáveis
interpretações do cinema em todos os anos,
uma Sophia Loren dona-de-casa composta com as cores do neo-realismo
que deveria inspirar a falsificação de Julia
Roberts, um Marcello Mastroianni cheio de uma melancólica
beleza de expressões) para produzir a sintaxe específica
do filme, feita com simplicidade mas também com personalidade
própria.
Um dia muito especial tem o tempo exato
de cada ação, onde cada gesto adquire uma
insubstituível função narrativa. Ao
utilizar o cinejornal como intróito à ficção
que se propunha contar, Scola busca para seu filme uma aproximação
com o documentário, uma antecipação
do melodocudrama que se disseminaria ao longo dos anos 80.
Quando o preto-e-branco do cinejornal é cortado para
a grande bandeira fascista desfraldada duma janela, os olhos
não sofrem este corte: a imagem anterior é
continuada na posterior, pois as cores pastéis se
revelam um minúsculo estágio adiante do preto-e-branco.
A voz que narra o cinejornal é a mesma voz radiofônica
que vai tornar-se o acompanhamento sonoro de fundo (ora
mais alto, ora mais baixo) do dia especial de Antonieta
e Gabriel, a mulher oprimida e o homossexual perseguido
pelo regime; Scola foi bastante feliz ao escolher as duas
principais vítimas do fascismo, a mãe de família
e o invertido sexualmente, para viver esta história
de amor silenciosamente contestatória. Se a fotografia
do cinejornal se prolonga na do filme, se os sons do cinejornal
são revividos pela transmissão radiofônica
que ecoa pelos espaços abertos e vazios do prédio
por onde Gabriel e Antonieta vão exercitar sua conscientização
e desalienação, o dia especial de Hitler e
Mussolini vai ter seu antídoto no dia especial dos
protagonistas do filme de Scola.
Passados vinte e cinco anos de seu lançamento nos
cinemas brasileiros, Um dia muito especial revela
a eternidade de certos filmes que, para além dos
modismos de sua época, têm a capacidade de
aprofundar-se no interior de suas personagens. E, ao efetuarmos
a comparação com obras recentes do realizador
(O jantar, 1998, ou Concorrência
desleal, 2001), podemos verificar como aquele antigo
frescor clássico de filmar se perdeu num academicismo
rançoso.
A objetividade ou transparência dos símbolos
narrativos em Um dia muito especial pode
ser avaliada nas imagens finais em que Antonieta, antes
de ir para a cama de seu marido, apaga as luzes da casa,
escurecendo o ambiente: ao mergulhar estas cenas finais
em sombras, Scola está identificando as sombras com
o fascismo. Nesta translucidez de significados Scola difere
de seus mestres italianos Luchino Visconti e Federico Fellini,
mais barrocos e enviesados em seus signos.
Como curiosidade final deste comentário, quero evocar
a encenação teatral que José Possi
Neto extraiu do roteiro do filme de Scola nos anos 80, com
as interpretações de Glória Menezes
e Carlos Zara, e que teve apresentações em
Porto Alegre em 1986. Tratava-se duma versão teatral
bastante detalhista em sua fidelidade ao filme, inclusive
naquela imagem hoje clássica em que Sophia Loren
(Glória Menezes) acaricia o órgão sexual
enrijecido de Marcello Mastroianni (Carlos Zara).
Por Eron Fagundes
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