Domingo, 15/03/2003
Se a personagem central de O pianista (The
pianist; 2002), o músico judeu-polonês Wladyslaw
Szpilman, sobreviveu à descaracterização
humana promovida pela turbulência nazista na Varsóvia
dos anos 40 do século passado, é bem verdade
que o realizador cinematográfico Roman Polanski -igualmente
polonês, igualmente judeu, igualmente um artista de
sensibilidade-está redivivo no seio da mediocridade
do cinema atual, depois de anos confinado em algumas produções
indignas de seu talento. Um dia destes, conversando por
telefone com um amigo, dei-me conta de que todos os bons
filmes de Polanski se situavam lá no fundo do passado;
difícil evocar um trabalho do cineasta assinado em
anos recentes -sintomático duma fase decadente, sem
dúvida.
O pianista recoloca Polanski no panteão
dos diretores de exceção. Não precisamos
mais necessariamente recorrer às reprises de Repulsa
ao sexo (1965), sua obra-prima, para recordar como Polanski
foi de fato bom.
O novo Polanski é um pouco atípico
na carreira do autor de O bebê de Rosemary (1968),
pois envereda por caminhos históricos de observação
política. É também a primeira vez em
que Polanski resolve mexer num assunto que marcou sua infância:
aos seis anos de idade o pequeno Roman fugiu de um gueto
deixando para trás seus pais, que ali morreriam,
algo assim como acontece com a personagem de seu atual filme:
Polanski desvinculava-se ali, em plena infância, de
suas origens para tornar-se um cidadão do mundo,
este judeu-polonês por acaso (?) nascido numa cidade
universal como Paris -rodando filmes pelo globo afora, Polanski
foi na verdade um natural do mundo. Em O pianista, além
de mostrar que está redivivo, o velho bruxo, tantas
vezes comparado com o cineasta espanhol Luis Buñuel,
está de volta à pátria e à sua
ancestralidade.
O que aproxima O pianista dos outros filmes
realizados por Polanski é o caráter sombrio
de seu estilo de filmar. Talvez as experiências infantis
de um Polanski judeuzinho perseguido expliquem todo o processo
estilístico de pesadelo do cineasta; impossível
para o realizador deixar de identificar-se na pele de sua
personagem, pois vivenciaram coisas assemelhadas, o autor
e sua criatura. O pianista é assim uma autobiografia
indireta, como muitas vezes são as obras de arte:
quem é Madame Bovary?
A cena mais característica e
tocante da narrativa é aquela em que um militar nazista
se apieda do judeuzinho escondido e, ao ouvi-lo tocar piano,
emociona-se e opta por ajudá-lo a sobreviver e não,
como seria da lógica do contexto, eliminá-lo.
É impressionante a transparência formal de
Polanski nesta seqüência: a câmara ora
apanha os dedos do pianista espalhando-se por sua emoção
corporal de artista, ora se coloca frente a frente com a
comoção facial do militar; por cima de todas
as diferenças, por cima de toda a selvageria humana,
uma forma de arte pode aproximar-nos, diz Polanski com seu
inigualável texto cinematográfico. Depois,
ao mostrar o confinamento de germânicos (ex-algozes
dos judeus poloneses) imposto por soviéticos, Polanski
parece querer dizer-nos que todos os totalitarismos se parecem.
Só o que pode salvar-nos são os acordes pianísticos
do final da projeção: é o banho n'alma
com que Polanski encerra o extraordinário diálogo
cinematográfico com seu público.
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