27
de setembro de 2005
O
ensaísta francês Jacques Aumont, em
seu livro O olho interminável (cinema e pintura) (1989), lançado entre nós pela Cosac & Naify
em tradução de Eloísa Araújo
Ribeiro, visa a desmontar o olho habitual com que
vemos as relações entre o cinema e
a pintura. Nascido da fotografia, cuja existência
passou a alterar as perspectivas da tela pictórica,
o cinema sempre buscou inspirações
em sua irmã ancestral, a pintura, talvez para
fugir um pouco de suas origens de espetáculo
de feira e atingir a nobreza artística; a
natureza plástica assemelhada do cinema e
da pintura favoreciam a aproximação. É esta
tensão plástica aproximativa que Aumont
quer descaracterizar para topar outros paralelos;
paralelo é um termo que cai bem aqui, pois
alude a linhas que não se encontram mas seguem
caminhos aqui e ali parecidos.
Aumont
parte da análise dos filmes primitivos
de Lumière, referindo certas palavras que
o crítico e cineasta francês Jean-Luc
Godard disse a propósito do pioneiro: “o último
pintor impressionista”. Estudando as imagens
criadas por Lumière, Aumont aproxima para
afastar as duas artes, valendo-se de garra crítica
e raciocínio elevado; Lumière foi o
iniciador do cinema e, trabalhando com imagens em
1900, só poderia mesmo ser o último
pintor de uma era, a dos impressionistas franceses.
Lumière seria, para Aumont, a confluência
da pintura com o cinema: a pintura em movimento,
somos tentados a pensar, mas Aumont quer dissociar
as duas artes, acentuando semelhanças para
logo fulminá-las, e no fim só recorre
a uma associação, aquela reivindicada,
curiosamente, por um autor comercial, o norte-americano
Martin Scorsese: liberdade para o cineasta diante
de sua obra, como o pintor tem diante da sua; a pintura
para o cinema se converte, pois, num projeto utópico.
Começando com Lumière, um pioneiro
cuja verdade como realizador cinematográfico
causa dúvidas e perplexidades e controvérsias,
começando com Lumière a partir de uma
frase de Godard, Aumont vai concluir seu pensamento
construindo estudos de filmes de Godard, desde os
borrões vermelhos de Pierrot le fou (1965),
passando pelas formas de enquadrar de Salve-se
quem puder, a vida (1980) e Je vous
salue, Marie (1985),
até chegar às complexas relações
pictóricas de Passion (1982), desaguando neste último
filme a inspiração básica do
ensaio. A frase dita em A chinesa (1967) pela criatura
de Jean-Pierre Léaud (“Lumière
foi o último pintor impressionista”) é desenvolvida,
sem uma característica explícita, no
filme Passion e aprofundada epistemologicamente
no texto de Aumont.
Em
sua conclusão, Aumont vai arrimar-se ainda
no filme francês Teresa (1987), de Alain Cavalier; é um
arrimo surpreendente e inesperado, pois, conquanto
articulada em muitos aspectos pictoricamente, a realização
de Cavalier evoca uma plástica mais teatral;
e surpreende mais ainda a inserção
de Aumont, porque, em seu ensaio, o pensador esqueceu-se
(adrede ou por desinteresse quase inconsciente) de
uma série de filmes cuja estrutura pictórica é bem
mais saliente que em Lumière, Godard ou Cavalier.
Talvez seja por isso mesmo que o analista os abandonou:
suas breves referências a Vincent Minnelli
indicam que Aumont não vê a coisa assim,
ele é um defensor radical da autonomia do
cinema –apesar da contaminação.
Para
que o leitor-espectador que se delicia com o pensar
cinematográfico (são poucos,
admito), O olho interminável é um manancial.
Para os outros (a maioria que freqüenta cinema),
parecerá árido e destituído
de emoção. É um trabalho de
rigor, que explica bem o cinema e estabelece caminhos
difusos para se perguntar que diabo a pintura está fazendo
dentro do cinema. Recentemente, um filme como A
inglesa e o duque (2001), do francês Eric Rohmer, todo
ele atulhado de telões pintados, poderia causar
engulhos à idéia meio purista de Aumont,
que não se tocou nunca de questionar por que
em alguns filmes a utilização pictórica é temática
e formalmente mais adequada que em outros.
Por
Eron Fagundes