15 de fevereiro de 2008
Depois de alguns impasses em sua filmografia representados por filmes mais digeríveis nas bilheterias como O amor custa caro (2003), um melodrama de suspense elegante vivido pelos rostos amáveis de George Clooney e Catherine Zeta-Jones, e Matadores de velhinhas (2004), uma anedota simplória interpretada com virtuosismo por Tom Hanks, os irmãos cineastas norte-americanos Joel e Ethan Coen voltam à forma de um cinema cru e sem concessões em Onde os fracos não têm vez (No country for old men; 2007). Uma linguagem cinematográfica inóspita e cerebralmente brutal dá a dimensão ousada da narrativa dos Coen; com um roteiro preciso e celeremente marcado extraído do romance do norte-americano Cormack McCarthy, os realizadores constroem o que se poderia chamar um neofaroeste-limite, pós-moderno, retirado das tradições mas sem o chão destas tradições, identificamos os elementos do gênero (os cenários desolados, os grandes planos abertos, o xerife, um inusitado mocinho, um malvado para além de tudo) mas não procedemos às ligações entre estes elementos. É como se os Coen bebessem na água de Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (1974), mas contaminassem esta água para que ela não pudesse espelhar nada. Um pouco da estranheza de Onde os fracos não têm vez nasce do mesmo sentimento rural de Peckinpah: os limites geográficos duma produção de cinema entre o Texas e o México, onde os anglo-saxões topam com a latinidade, espelhada na música que alguns cantadores mexicanos entoam diante do ator Josh Brolin cuja personagem, ferida, acaba de acordar atirado numa praça esquisita pós-fronteira.
Sempre se fez uma oposição rudimentar entre o cinema de ação (o policial, o faroeste) e uma narrativa lenta, pensada; entre um Francis Ford Coppola e um Michelangelo Antonioni. Onde os fracos não têm vez interfere nesta marcação arbitrária. Charles Bronson zombou certa vez do cineasta Ingmar Bergman porque este lhe disse que não sabia filmar tiros. Não zombaria dos Coen: o matador vivido pelo espanhol Javier Bardem em esquisita caracterização (seu cabelo é um verdadeiro cenário maquiando sua passagem pelo filme) e o homem que ele persegue, na pele de Josh Brolin, atiram para valer e os Coen sabem como filmar seus tiros. Um filme de ação este intoxicado faroeste adiante de tudo? Tem ação, é certo; mas aos poucos vemos que estas ações se esvaziam, porque é como se não acontecesse nada e os planos lentos fossem acompanhando os gestos quase gratuitos das personagens; estamos à distância do clima mais fácil e anedotário de Matadores de velhinhas, onde o humor dissolve a perversidade da criatura de Tom Hanks; em Onde os fracos não têm vez o humor (extremamente perverso) exaspera a crua malvadeza do matador de Bardem. Há uma exasperação de filmar que nenhum filme de ação poderia ter; mesmo sanguinário e mau, o novo trabalho dos Coen vai extirpando a paciência do espectador hollywoodiano. Os diálogos, especialmente os do matador com suas vítimas, são elípticos, perturbadores; assim como elípticas são certas seqüências, como a do encontro do matador com a jovem esposa de seu perseguido; teria o maior dos facínoras matado ou poupado a doce e ingênua personagem? São elipses que desmancham inapelavelmente o bem-estar do observador tradicional dentro deste filme.
Talvez seja este o mais virulento e desorientador filme dos Coen. O público não tem muito a que se agarrar; instabiliza-se, muitos não vão suportar bem o filme. A tensão plástica da fotografia de Onde os fracos não têm vez criam sua atmosfera única. Interpretado com afinadas tabelinhas por todo o elenco, o filme traz de lambuja a sempre serena presença cênica de Tommy Lee Jones como o xerife que vai interceptando os cenários antes preenchidos sangrentamente pelo perseguidor e pelo perseguido. É uma fala de Lee Jones que vai fechar abruptamente o filme, como ocorria nas películas de antigamente, de fim abrupto; e sua personagem está contando à outra um sonho esquisito em que está com seu pai mas o pai é vinte anos mais moço que o filho.
Por
Eron Fagundes