O BRASIL DENTRO
DO ÔNIBUS
Se Edifício
Máster (2002), de Eduardo Coutinho, utiliza um edifício como a metáfora
da realidade brasileira, em Ônibus 174 (2002) o realizador José Padilha
parece transformar, em outro documentário, as pessoas que vivenciam um drama
criminal num ônibus em signos das deformações de nossa sociedade. Padilha não
altera um milímetro os episódios (fartamente divulgados pela televisão da época,
12 de junho de 2000, o seqüestro involuntário dum ônibus carioca que produziu
algumas horas de terror para o Brasil ver, até ao inesperado e trágico desfecho),
mas Ônibus 174 parece às vezes um filme de ação, pois seu protagonista,
o marginal Sandro, se arroga a condição de co-diretor: simula mortes, simula
os próprios gritos das vítimas, determina um grau de crueldade que, vai-se ver
no final, não é o seu forte. Tudo falso, tudo mentira, menos o encerramento:
duas mortes, o marginal e uma refém.
No dia dos namorados, 12 de
junho de 2000, o Brasil esteve dentro do ônibus 174, uma das muitas linhas de
transporte coletivo da cidade do Rio de Janeiro, a verdadeira corte brasileira,
ainda que há muito tempo não seja mais a capital do país. Muito do que ocorreu
ali foi produção da mídia. O jovem Sandro, um dos sobreviventes da chacina da
Candelária, no próprio Rio, queria aparecer na televisão, um garoto pobre que
se tornaria visível para a burguesia brasileira: e o obteve da maneira mais
dilacerante possível. Segundo um dos entrevistados da realização de Padilha,
ao matar por asfixia a Sandro que era conduzido com vida numa das viaturas da
polícia, sempre treinados para eliminar marginais, os agentes de segurança completavam
o serviço da Candelária, fechava-se o ciclo. Apagada a breve e incômoda visibilidade
de Sandro, a burguesia poderia recolher-se em sua indignação. Uma obra cinematográfica
como Ônibus 174 para que serve mesmo? Para reembolsar o espectador de
um país cheio de falhas: ao menos temos bons filmes, ainda que à custa das mazelas
da realidade.
Por Eron Duarte
Fagundes