JANE AUSTEN: NOSSA CONTEMPORÂNEA
 

 

27 de fevereiro de 2006

O leitor sisudo e pouco habituado às letras romanescas depara com aquela ingênua e arcaica frase inicial de Orgulho e preconceito (1813), um dos mais prestigiados romances da inglesa Jane Austen: “É verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma fortuna, deve estar necessitado de esposa.” Cai de costas e vai desistir; tenta mais um pouco, e esta banalidade de narrativa para moças de família (naquela época toda moça era de família: mas precisamos hoje atualizar a expressão que seria pleonástica no século XIX) insiste em permanecer nas páginas; o leitor vai lendo, vai lendo, o texto nunca se ausenta de seu tom, mas explode um romance vibrante e agudo sobre as pequenas vidas provincianas na Inglaterra do início do século XIX. Eis Jane Austen: uma leitora de hoje que vê telenovelas pode deliciar-se com esta sua aparência de interessar-se só por miudezas melodramáticas; um leitor mais elaborado como seu tradutor Lúcio Cardoso se extasia diante duma obra “rigorosamente construída” e que “era a prodigiosa revelação do temperamento de uma romancista.” Jane Austen, grande ficcionista britânica, morta aos quarenta e dois anos, sem sair da pequenez de seu meio, conquistou na posteridade o mundo; Jane Austen está longe de deter a profundidade psicológica de uma George Eliot (os tipos de Austen são planos demais) ou abrir-se para o esteticismo de um Henry James (o verbo de Austen não recua diante do trivial), mas tem o senso romanesco que a faz inquestionavelmente grande. Amamo-la com igual intensidade minha mãe, nada versada nas coisas da literatura e ouvinte das radionovelas de antanho, e eu, leitor intrigado com o francês Marcel Proust e o brasileiro Machado de Assis.

Todo este parágrafo acima para celebrar o ressurgimento de Jane Austen entre nós com o filme Orgulho e preconceito (Pride and prejudice; 2005), dirigido com aguda sensibilidade por Joe Wright. Diversamente da adaptação que a indiana Mira Nair fez de William M. Thackeray em Feira das vaidades (2004), Wright despreza a modernização de intenções; sua exuberante reconstituição de época, certos trejeitos de teatro amador dos atores, a entonação literária dos diálogos (a fala mais natural e maliciosa é a de Keira Knightley como a heroína da trama) e toda a composição do quadro apontam para um arcaísmo romântico de que o cinema há muito se afastou –esta ousadia do cineasta em contradizer o gosto do público atual torna o filme inicialmente pedante e em cujo clima entramos a medo, com alguma dificuldade; este estorvo inicial vai sendo superado com a mesma vivacidade com que aquele leitor de Jane Austen ignora seus lugares-comuns para se deter em sua mestria de romancista.

Cabe realçar que a direção de elenco, apesar do incômodo de se aceitarem marcações tão fechadas e artificiosas, é um dos trunfos do filme: percebe-se ao correr da película que a insistência do diretor em manter este padrão vai funcionar perfeitamente. O que parecia obtusidade crítica do realizador, assim como certas composições mais postiças do cenário de época, se converte em diatribe a uma época. Deve-se observar com atenção o desempenho de Keira Knightley como Elizabeth Bennet, a marcante criação de Jane Austen: a maneira da atriz difere muito de seus parceiros de elenco; está mais solta, circunda-a uma agilidade que é negada aos outros; demais, Keira está extraordinária com sua voz melíflua, sua face que acaricia a ternura do espectador, seus olhos vivazes e úmidos, seu jeito peculiar de mover os lábios, a forma entre romântica e clássica como o corpo e o som e toda a aura da intérprete se diluem nas densas fumaças de cores da fotografia. Também é bom reencontrar a inglesa Brenda Bletyn reinterpretando um pouco da trêfega mãe que ela fizera em Segredos e mentiras (1996), do inglês Mike Leigh. Donald Sutherland, que um dia foi o Casanova de Fellini cruzando por delirantes peças de época, e Judi Dench são composições notáveis do conjunto. O patético-romântico da realização pode às vezes constranger; mas vencemos o constrangimento em nome duma sensibilidade que a virulenta arte de hoje perdeu; este patético-romântico nasce na pele dos atores, inunda as imagens, desfibra-se nos acordes pianísticos em allegro da faixa sonora.

Nos créditos finais, há um agradecimento à atriz Emma Thompson, que não atuou no filme mas deve ter dado informações valiosas ao diretor, valendo-se de sua experiência de intérprete durante as filmagens de Razão e sensibilidade (1995), obra cinematográfica do chinês Ang Lee a partir de um texto da escritora inglesa. De certa maneira, deve haver um processo de filmagem para um romance de Jane Austen; em Orgulho e preconceito Joe Wright se aproxima com inusitada doçura deste processo único: para dizer que Jane é nossa contemporânea mesmo que seu jeito de escrever e anotar sobre o mundo não possa ser reconstituído contemporaneamente.

Por Eron Fagundes

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