UMA ESTÉTICA IRANIANA?
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27 de dezembro de 2004

Diz-se que o cinema iraniano é tributário do neo-realismo italiano: um cinema cuja maneira de filmar nasce do contato direto com a realidade. Mas a realidade vista por cineastas iranianos conhecidos por aqui ao mesmo tempo que se assemelha (um certo despojamento, uma certa preocupação social) se distancia tremendamente: nada mais diferente do que a aproximação à realidade de obras como A caminho de Kandahar (2001), de Moshen Makhmalbaf, A maçã (1998), de Samira Makhmalbaf, ou Gosto de cereja (1997), de Abbas Kiarostami. Estereotipar uma nacionalidade cinematográfica tão pouco industrial quanto a do Irã é uma miopia crítica; é um defeito de visão porque somos educados pelo processo de Hollywood em que os filmes são mesmo “tipos”.

Jafar Panahi é um realizador iraniano que tem suas próprias marcações cinematográficas. Em Ouro carmim (2003), cujo roteiro é de Abbas Kiarostami, o fato de o plano inicial descrever um assalto a uma joalheria não o levará a uma narrativa policial; o que temos em cena é o vazio social e humano de uma personagem, uma atualização do realismo do italiano Roberto Rossellini e da metafísica de outro italiano, Michelangelo Antonioni. Panahi não é propriamente herdeiro destes mestres do cinema, pois tem um jeito mais trivial de reflexionar sobre as coisas; mas Kiarostami, autor do roteiro, cruza as linhas de Rossellini com as de Antonioni.

Em seu novo filme, Panahi faz com que o plano inicial seja completado pelo plano final. De certa maneira isto já ocorrera em O círculo, rodado por Panhi em 2000. Em Ouro carmim a imagem começa escura, com vozes que se atropelam (isto também sucedia em O círculo); quando a luz vem à tela, vamos deparar com um longo plano fixo em que presenciaremos um assaltante submetendo o dono duma joalheria, seu comparsa do lado de fora, uma freguesa invadindo a área do assalto, a multidão espiando curiosa e tensa, o criminoso ameaça a todos que logo se dispersam. O plano final é um plano complementar do que abriu o filme: descreve a chegada do joalheiro, o procedimento de abrir sua joalheria, o começo do assalto cujas frases bruscas já estavam no plano inicial na tela escura com que se inicia a narrativa.

Planos fixos. É na estaticidade destes planos, um pouco à maneira do japonês Yasujiro Ozu, que Panahi estrutura boa parte da narrativa de Ouro carmim. O plano inicial que se repete no final (como se ambos os planos fossem rodados para ser uma seqüência única) é notável e iluminador do processo. Mas o fascínio da realização nasce também dos contrastes que a introdução de alguns planos móveis dá à estética de Panahi. Onde surgem estes planos móveis? Surgem quando a câmara tem de acompanhar as andanças de motocicleta da personagem, pois ele é um pobre e desvalido entregador de pizza, entediado e sem perspectivas; mas aqui os planos móveis são fixos em relação ao objeto em cena, a motocicleta e a personagem. Mais interessantes são os planos móveis na residência de um rapaz estranho e deprimido que convida o entregador de pizza a entrar e cear com ele; inicialmente um agitado movimento de câmara pelo cenário da mansão vai expor-se como signo do olhar curioso da personagem para um ambiente que desconhece; depois vários movimentos de câmara dentro da casa descrevem com precisão o cenário burguês que permitiu o acesso de um proletário a seu universo.

O filme se distende e se dispersa em vários episódios, criando fragmentos que tornam o ritmo narrativo muitas vezes abstrato. Certos planos do trânsito da metrópole (um de dia, outro à noite) são característicos duma descrição fílmica que torna a realidade numa abstração formal: os veículos deixam sua materialidade social para se converter pouco a pouco na imagem em peças de cena; é a insistência do olhar da câmara que faz isto.

Há muita melancolia em Ouro carmim. Mas há uma seqüência teatral e claustrofóbica. É uma seqüência noturna. A personagem vai entregar pizza num prédio em que se dá uma festa. Sem muitas explicações, policiais prendem os homens e as mulheres que tentam sair daquela festa. O próprio entregador de pizza é detido com sua motocicleta nas proximidades do prédio. O fato de a personagem não poder abandonar o local, apesar de instar que precisa trabalhar, produz a claustrofobia do espectador. Toda a longa seqüência é interrompida por um plano que mostra as andanças de motocicleta sob o dia de Teerã: é uma seqüência, esta da festa noturna, que não dá o desfecho ao observador.

Em outra seqüência, a do jovem rico que convida o entregador de pizza a comer com ele, o desfecho também é sonegado. A seqüência se conclui sem dizer muita coisa de concreto sobre o misterioso jovem (que começa falando duma noitada com duas vadias e depois o vemos conversando ao telefone com uma possível namorada) nem encaminha a saída do entregador de pizza dali; um corte para um plano de Teerã, igualmente noturno, que subitamente “amanhece” (o aclaramento da imagem), vai dar outro rumo a esta narrativa cheia de desvios. Este plano do “amanhecer” é o penúltimo do filme, pois no momento seguinte é visto o plano que descreve o início do assalto cujo desfecho tinha sido narrado no plano fixo inicial.

De todos os jogos estéticos de Ouro carmim, o brilho promana muito desta curiosa alternância entre a fixidez e a mobilidade da câmara.

Por Eron Fagundes