UMA SENSIBILIDADE BRASILEIRA
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14 de junho de 2004

Embora parta da idéia hitchcockiana do voyerismo por uma janela, O outro lado da rua (2004), dirigido pelo brasileiro Marcos Bernstein, não é de maneira alguma a versão nacional de Janela indiscreta (1954), do inglês Alfred Hitchcock. O ritmo narrativo de Bernstein é feito do íntimo de suas personagens, está longe da preocupação de Hitchcock em segurar o espectador na ponta da poltrona ou esquadrinhar detalhes de uma certa linguagem de cinema; as pesquisas introspectivas do realizador brasileiro estariam mais no caminho do francês Robert Bresson, busca do despojamento, processo de aprofundamento das relações humanas como sintomas de um realismo interior.

Segundo Bernstein, co-autor do roteiro de Central do Brasil (1998), o melhor filme de Walter Salles Jr., sua história em O outro lado da rua tem o argumento extraído de algo real: no Rio de Janeiro chegou-se a elaborar um projeto em que aposentados se organizaram para vigiar o bairro da presença de delinqüentes. Na narrativa de Bernstein uma sempre sensível e articulada Fernanda Montenegro dribla a solidão da velhice transformando-se em informante da polícia; o conflito mais sério vai surgir quando ela vê de sua janela, com um binóculo, um homem (Raul Cortez, à altura interpretativa de Fernanda) aplicar uma injeção numa mulher que logo depois vem a falecer; tentando denunciar o homem, que é um figurão do governo, ela passa a relacionar-se sentimentalmente com ele, que de assassino vira Don Juan, como lhe observa sarcasticamente seu amigo policial.

Trata-se dum filme medido e contemplativo, em que o cineasta estreante acerta bem os passos de sua linguagem. Pontilhando um tema difícil como o da velhice, Bernstein exubera em sutileza e profundidade, coisa bastante incomum no cinema brasileiro, sempre voltado para o lado de fora da realidade. A comentada cena sexual entre Raul e Fernanda, rodada e interpretada com muito tato, evoca uma outra destas seqüências raras de sexo entre velhos, também no cinema brasileiro, passada entre Jofre Soares e Miriam Pires na obra-prima Chuvas de verão (1977), de Carlos Diegues, esta certamente mais crua e objetiva que o sombreado amor erótico de Raul e Fernanda.

A finalização do filme, com as personagens de Raul e Fernanda se olhando angustiadamente de suas respectivas janelas, coroa de significados íntimos O outro lado da rua, que, apesar das diferenças, aproxima suas duas criaturas por vários aspectos, um deles por certas dificuldades familiares semelhantes, a de Regina/Fernanda com seu filho e a de Camargo/Raul com sua filha, tópicos apenas esboçados ao longo do filme mas de grande força. A música de Guilherme Bernstein Seixas (talvez parente do realizador) e a fotografia de Toca Seabra dão à bela história o acompanhamento adequado.

Por Eron Fagundes