28
de julho de 2003
O cinema
dos irmãos italianos Paolo e Vittorio Taviani começou
a destacar-se internacionalmente com Pai, patrão
(Padre padrone; 1977), premiado com a Palma de Ouro do Festival
do Cinema de Cannes de 1977, de cujo júri foi presidente
o realizador peninsular Roberto Rossellini, que viria a morrer
pouco depois. É uma saudável coincidência
que Rossellini fosse o presidente do júri que aclamaria
Pai, patrão, pois esta película
dos Taviani se enquadra com perfeição naquela categoria
que o crítico francês Guy Hennebelle chamou “os
filmes tardios do neo-realismo”, em seu fundamental livro
Os cinemas nacionais contra Hollywood (1975).
Rossellini
impulsionou a alavanca do neo-realismo italiano com duas obras-primas,
Roma, cidade aberta (1945) e Paisà
(1946); estes filmes, exibidos em pequenos cinemas americanos
nos anos 40, emocionaram uma atriz de Hollywood, a sueca Ingrid
Bergman, que a partir destas projeções começava
a apaixonar-se por Rossellini e iria gerar a transformação
do método neo-realista numa metafísica cinematográfica
diferente em películas como Europa 51 (1951)
e Viagem pela Itália (1953). Os Taviani
também sofreram a metamorfose de seu realismo cinematográfico
ao longo dos anos, pois em sua última obra vista por aqui,
As afinidades eletivas (1995), uma adaptação
do escritor alemão Goethe, um inusitado refinamento literário
sobressaía.
Pai
patrão é ainda o auge da essência
neo-realista dos Taviani. Parece-me que sua sensibilidade específica
está mais ligada ao Vittorio de Sica de Ladrões
de bicicletas (1948) do que aos retratos fragmentados
e cronísticos de Rossellini. As preocupações
realistas dos Taviani se evidenciam na opção por
atores amadores, que permitam captar as rudezas populares tal
como era o escopo de um certo cinema político (ou politizado)
dos anos 70. O amadorismo dos atores não desmancha a clareza
fílmica, graças à habilidade dos realizadores-manos
para lidar com os elementos aleatórios de tal estética;
e mais: visto hoje, o desempenho de Omero Antonutti como o pai
patrão está entre as mais brilhantes e
verdadeiras interpretações da história do
cinema. Outro dado precioso do realismo dos Taviani é utilizar
o dialeto sardo, assim como o recente filme brasileiro Desmundo
(2003), de Alain Fresnot, se vale dum português de época
para melhor caracterizar uma realidade.
Despojado
e rigoroso, Pai patrão acompanha de maneira
seca, apoética a infância e a adolescência
de Gavino Ledda, escritor da Sardenha que contou em livro autobiográfico
suas memórias que agora servem de base para a realização
do filme dos Taviani. Ao cabo da narrativa é o próprio
Gavino Ledda quem, num processo de desdramatização
dos cineastas, se dirige para a câmara, dando os retoques
finais de sua história e evocando aquele episódio
contado no início da fita, o pai de Gavino invade abruptamente
a sala de aula para levar seu filho, pois precisa de braços
na lavoura. A imagem final do filme mostra, em primeiro plano,
as costas de Gavino (o verdadeiro), que está sentado num
dos agrestes cenários exteriores em que se passou sua infância
e o filme dos Taviani.
Repleto
de detalhes da vida rural italiana, Pai patrão tem uma
curiosa seqüência de excitação sexual
coletiva (de comunidade) quando mostra os meninos copulando com
bichos (ovelhas, galinhas) ao mesmo tempo em que se detém
na pressa com que se despem na cama os pais de Gavino e depois
a câmara debruça-se sobre a vila captando ofegantes
respirações eróticas. Há ligações
de cenas de diferentes fases da vida do protagonista: o ato de
defecar no leite das ovelhas enquanto estão sendo ordenhadas
pelo menino e mais adiante pelo adolescente; a esperteza de Gavino
que se corta no canto do lábio em criança para dizer
a seu pai que foi agredido por ladrões que lhe roubaram
duas ovelhas (na verdade ele as trocou por uma sanfona) vai repetir-se
com Gavino aos vinte anos quando em sala de aula para não
ir ao quadro-negro se corta à mesma altura do lábio
em que o fizera em criança. São rimas visuais simples,
habilmente evocativas do tempo, que provocam no espectador o prazer
da descoberta. Como é prazeroso redescobrir, tantos anos
depois, o sabor duma obra-prima dos anos 70, numa pequena mostra
de “filmes operários” que o tempo se esforça
inutilmente por sepultar.
Por Eron Fagundes
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