29
de março de
2004
A espiritualidade
pasteurizada de Hollywood é o que oferece o diretor Mel
Gibson em A paixão de Cristo (The passion of the Christ;
2004). Poucas vezes o cinema foi capaz de propor uma visão
tão rasteira da personagem de Jesus Cristo quanto neste
filme. Apesar de seus diálogos em línguas desaparecidas
(o aramaico e o latim vulgar), a narrativa de Gibson assombra
por sua trivialidade emocional; a busca de dar contemporaneidade
a uma história de sempre vai ter a um vazio de propósitos
constrangedor para uma produção tão requintada.
Sem embargo dos muitos dólares investidos, a realização
de Gibson é tão infantil em seu roteiro quanto
o filme brasileiro Maria, mãe do filho de Deus (2003),
de Moacyr Góes, ou seja, teatrinho de colegiais nas festas
de fim de ano. Com uma diferença: o tombo de Gibson é maior
porque seu trabalho é mais pretensioso –e uma pretensão
mal resolvida está sempre na beira do ridículo.
Muita
gente andou chocada com a violência explícita
e gratuita de A paixão de Cristo. Os truques para impressionar
o espectador com sangue e gemidos são muito primários
e um retrocesso mesmo em Hollywood. Por exemplo: a violência
desnorteante do filme francês O quarto dos oficiais (2001),
de François Dupeyron, recentemente exibido em Porto Alegre
numa mostra alternativa, é bem mais aguda e adulta e se
coloca muito adiante das bobagens visuais de que se cerca Gibson
para assustar seus incautos assistentes. Quem discute o belo
filme de Dupeyron? Para a futilidade do cineasta americano, gasta-se
uma polêmica inútil: não é a violência
o problema de A paixão de Cristo, pois a verdade histórica
certamente foi mais bárbara do que qualquer filme pode
mostrar; a fraqueza do filme é outra, um pouco a gratuidade
e a superficialidade da violência encenada, mas principalmente
a ausência da personagem central, Jesus Cristo.
Quem é Jesus no filme de Gibson? Sangue, gemido, caretas.
Personagem mal construída, ausente mesmo como personagem,
o Jesus de Gibson está longe do Jesus amorosamente anticonvencional
que o cineasta católico Roberto Rossellini expõe
em O Messias (1976). Não cito um gênio do cinema
para exigir de Gibson idêntica capacidade: o mínimo
que se pode querer de um diretor que ouse aproximar-se deste
tema é honestidade estética.
Assim
como foi realizado, A paixão de Cristo assume as
proporções de um fiasco de que só Hollywood,
do alto de seu pedestal, poderia proporcionar-nos
Por Eron Fagundes
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