15 de novembro de 2011
Mesmo que tente experiências diversas de um filme para outro, o cineasta mineiro Ernane Alves revela uma coerência de estética cinematográfica bastante rara no cinema brasileiro, cujas hesitações culturais e industriais solapam muitas boas intenções. Palo (2011), uma realização de média-metragem documental (vai a cinquenta e seis minutos de projeção), é uma nova amostra da multiplicidade de interesses do cinema de Ernane que, todavia, volta sempre a uma origem de sua essência como diretor de cinema — a origem de seu interesse pelo humano, melhor dizendo, pelo verdadeiro no humano.
É uma sequência-depoimento do guitarrista flamenco Agustín de la Chica (um plano fixo em plano próximo como são todos os enquadramentos armados aqui por Ernane mas onde a câmara na mão apresenta sutis instabilidades que entremostram o humano por trás da máquina): Agustín circula insistentemente com seu cálido verbo espanhol dissertando sobre a necessidade do humano, sobre a grandiosidade do humano, sobre o fato de que o humano é tudo na Terra. É um pouco como se esta cena fosse um resumo filosófico de Palo, pois tudo o mais que é filmado se volve para a valorização do humano, o humano ancestral dos ciganos que aportam à capital mineira, o humano aprendiz dos indivíduos duma escola de flamenco de Belo Horizonte que apresentam suas próprias inquietações diante da dança estrangeira adaptada à realidade brasileira no contato (no filme) com dois artistas estrangeiros.
O flamenco pode ser a bola da vez no cinema de Ernane: ele se interessou pelas histórias das personagens da Tertulia Cutlural Flamenco La Fragua e conduziu seu cinema até lá. Em Confissões de Olavo (2007), ficção, ele espelhou sua narrativa na humanidade dos garotos de programa. Em Crunch (2008), outra ficção, é o tédio demonstrado numa teoria científica que ressalta, mas ainda é o homem (real) que está no centro da trama. Finalmente, em Cinema vale sonhos (2010) a elegia do olhar amoroso do cinema para as personagens da vida atinge o paroxismo. Palo é também uma evolução para esta busca cinematográfica do humano. Neste aspecto, a imagem-chave é a do discurso solto e fácil de Agustín a que me referi no parágrafo anterior. No frigir dos ovos, talvez haja uma essência rosselliniana (à maneira de Roberto Rossellini, cineasta italiano, talvez o maior diretor de cinema que já tenha existido) naquilo que Ernane Alves se empenhe em fazer presentemente no Brasil.
Palo começa com três depoimentos de criaturas mineiras interessadas no universo do flamenco. As primeiras imagens que aparecem são as da bailarina de La Fragua, Laura Leal, uma típica morena mineira que a câmara em algum momento elege como a “estrela” do documentário, embora o cinema direto e despojado de Ernane desfigure este “falso estrelato” logo em seguida; depois surgem os depoimentos de Julio Fernandes, um aficcionado do flamenco, e de Leonardo Mordente, um estudioso da cultura flamenca (será Mordente, num depoimento mais para o final, quem explicará a polissemia do título do filme de Ernane, ligando entre os muitos significados a questão do jogo de cartas àquilo que o flamenco e o próprio filme se propõem contar como narrativas). O miolo do filme será ocupado pelas entrevistas do cantor flamenco Javier Flores e do guitarrista Agustín de la Chica. Os cenários do Mercado Central de Belo Horizonte, tentando recapturar os pratos da velha Andaluzia, são outros dados de linguagem distribuídos harmoniosamente pela montagem do filme, que flui sempre admiravelmente.
Por falar em dados de linguagem, é bom pensar em como um documentário como Palo é construído. E sua construção começa e termina pelo roteiro de Ana Paula Valois, uma jornalista mineira cujos anos de experiência na televisão serviram para um casamento estético perfeito com o cinema natural de Ernane. Segundo Ana, seu roteiro começou pela estrutura de um guia de perguntas. Em cena algumas perguntas são feitas, em off (voz fora do quadro), pela própria Ana. No entanto, a atividade de Ana como roteirista não se esgota aí, vai ter sequência na mesa de decupagem, quando Ana e Ernane passam a discutir o que deve ficar no filme e como deve ficar, fechando-se assim o roteiro final (que é o roteiro decupado, o roteiro pós-filmagem); assim trabalhado, o roteiro é algo que está junto da direção, como colado, de uma certa maneira em sentido amplo Ernane pode estar dividindo o roteiro dom Ana e Ana pode estar dividindo a direção com Ernane, tornando-se os méritos da realização o resultado desta união vigorosa de talentos.
A música flamenca é o assunto motivador de Palo. O filme cruza pela humanidade desta música. Mas acaba vendo o flamenco como música, ou seja, arte, e não um exotismo regional. Isto se evidencia na magistral fala final de Agustín, que alude às relações de Mozart com Beethoven que se teriam encontrado uma única vez na vida e que todavia este foi amado por aquele. O dito surge de boca de uma personagem documental que escapa ao roteiro inicial (um guia de perguntas estimulador) e que é mesmo assim, pela decupagem, uma peça exemplar do roteiro de Ana filmado com o engenho amorosamente humano de Ernane.
Por
Eron Fagundes