20
de dezembro de
2004
O projeto
cinematográfico do realizador Eduardo Coutinho segue intacto
em Peões (2004), considerado como o outro lado de Entreatos (2004), de João Moreira Salles, seu filme-gêmeo.
Enquanto este acompanha os últimos trinta dias da campanha
que levaram Lula à Presidência do Brasil, humanizando
a figura do político geralmente transformado em caricatura
pela mídia, a realização de Coutinho mostra
os depoimentos de “peões” que não deram
tão certo quanto Lula, trabalhadores (metalúrgicos
principalmente) que na época atual do desemprego como
praga permanecem à margem de desfrutar as riquezas da
sociedade; no filme de Salles vemos com ênfase o narcisismo
de político em que se converteu o ex-metalúrgico,
no de Coutinho o último entrevistado, o operário
desempregado Geraldo, fala longamente sobre as durezas de sua
vida, chegando a perguntar a Coutinho se ele já foi peão
(recebendo um seco: “Não.”); as últimas
imagens são o debruçar-se doloroso sobre o rosto
amargo e desconsolado de Geraldo, o peão que não
quer que seu filho seja peão, contrariamente ao que ocorria
com um entrevistado anterior, que fazia questão que seu
filho, um rapaz que aparecia igualmente em cena, fosse peão,
questionando a indagação de Coutinho: “É desmérito? É desmérito?” exclama
a personagem com uma fúria no olhar e na face.
Coutinho
faz em Peões mais um de seus belos filmes de
conversa, em que ele busca a inserção de seu trabalho
numa realidade cinematográfica. Tudo é muito sutil
e sua habilidade para fazer com que suas personagens narrem é sempre
espantosa; é tão simples e ao mesmo tempo tão
complexo, na teia de oposições em que as diversas
vozes narrativas se articulam. Se para Salles cinema é uma
questão de montagem, para Coutinho a montagem se estrutura
nas vozes que aparecem durante as filmagens.
Mas
a figura de Lula, conquanto distante, não está ausente
de Peões. Ele não é um dos entrevistados
da fita: transformou-se muito para que pudesse submeter-se ao
espírito singelo da narrativa; certamente por isso Coutinho
desfez o projeto de filmar a campanha de Lula concomitantemente
com Salles, filmar Lula no estágio atual da vida do ex-metalúrgico
trairia o projeto cinematográfico atual de Coutinho, que é observar
com sua câmara os seres humanos mais frágeis. Há uma única
cena de Lula na campanha presidencial, uma passeata em São
Bernardo do Campo: é o ponto de ligação
do filme de Coutinho com o de Salles, dizem que foi ali o único
momento em que as equipes das duas produções se
encontraram ao longo de suas filmagens. Que aparece de Lula em
Peões? O que aparece de Lula na película de Coutinho é cinema,
citações a certos clássicos do cinema operário
brasileiro, como Greve (1979), de João Batista de Andrade,
ABC da greve (1979-1990), de Leon Hirszman, e especialmente Linha
de montagem (1982), de Renato Tapajós, ocorrendo que os
inflamados discursos em sindicatos pronunciados por Lula ainda
hoje arrepiam, como arrepiavam quando se via Linha de montagem
em guetos universitários no início dos anos 80.
Assim, Coutinho mostra o Lula antigo como um produto do imaginário
cinematográfico da época; Peões pode ser
lido como uma retomada melancólica da luta operária,
mostrando que ela parece não ter futuro em tempos sem
emprego.
Por Eron Fagundes
|