PERUME DE MULHERES
 

 

22 de janeiro de 2007

O realizador germânico  Tom Tykwer é um apreciador da excentricidade das situações, o que, em se tratando de um alemão, não é novidade. Perfume, a história de um assassino (Perfume: a story of a murderer; 2006) é a mais nova demonstração da extravagância de filmar de Tykwer e promete não deixar indiferente os espectadores, mexendo com os pruridos morais e sensoriais de todos. Em Corre, Lola, corre (1998) o cineasta deixou um pouco de lado o rigor germânico de seus achados para se entregar a uma corrente visual e narrativa que se comunicasse mais facilmente com o observador de Hollywood. No outro filme do diretor conhecido por aqui, Wintersleepers, inverno quente (1997) a estranheza cinematográfica de Tykwer era mais metodicamente formal e teutônica, aproximando-se um pouco das complicadas experimentações estilísticas de seus patrícios, de que Alexander Kluge é o exemplo supremo.

Em Perfume, uma super-produção de época internacional que envolve capitais alemães, franceses e espanhóis, se cruzam as duas tendências de Tykwer: uma condição de autor excêntrico e inquieto e um diretor que quer harmonizar suas invenções dentro da compreensão e dos sentidos das platéias comerciais. Baseado num livro de sucesso do alemão Patrick Süskind, Perfume, em três quartas partes de sua narrativa, envereda por um filme de época chocante e perturbador, que mostra que a criatividade de uma história pode ser algo mais que a sofisticação edulcorada de Mais estranho que a ficção (2006), de Marc Forster; já no começo, a voz insinuante do narrador-over vivido pela voz de John Hurt (o sempre lembrado homem elefante de David Lynch, outro cineasta de esquisitices, mas americano) acompanha com rigor o nascimento do protagonista, Jean-Baptiste Grenouille, nascido de uma vendedora no chão dum pútrido mercado de peixe, o único bebê dela que se recusou a virar aborto nas águas dos rios locais; desde esse início, fica claro o contraste entre as origens mal-cheirosas da personagem (um rude, um primitivo) e o refinado nariz de que a natureza o dotou, transformando aquele indivíduo calamitoso no mais extraordinário aromista de seu tempo, o século XVIII francês.

Mas Jean-Baptiste, um artista consumado, esquecido dos compêndios porque sua arte (habilidade nasal para a linguagem dos aromas) é fugidia e esquecida mesmo, vira criminoso. Sua primeira vítima nasce do acaso: atraído pelo odor duma jovem, ele a mata abafando sua boca e suas narinas para que ela não grite e chame a atenção dum casal de namorados que circula naquele beco escuro. Depois ele contrata uma prostituta, tenta submetê-la à vontade dele de capturar o aroma do corpo dela, mas a resistência da mulher (que o tem por um tipo muito fora de órbita) o leva a assassiná-la para executar seu trabalho. Em série, passa a tirar a vida a muitas outras jovens bonitas e donzelas da comunidade para dar vazão a seu projeto: criar perfumes cuja origem são os odores humanos. Capturado depois de dar cabo da vida da filha de um nobre (a bela Rachel Hurd-Wood, seu pai é o fleumático Alan Rickman, depois da série Harry Potter nunca logrou livrar-se de uma persona fílmica que se repete), Jean- Baptiste é execrado pelo povo e deverá morrer sendo açoitado por um carrasco que lhe dará doze golpes com uma barra de ferro que lhe quebrará osso por osso; o espectador começa a imaginar o sofrimento daquele jovem, a câmara se debruça sobre a magreza e o desqualificado físico do ator Ben Wishaw como antevendo as cenas mais sanguinárias do cinema.

Aí se dá a reviravolta. Não li o romance, mas assim como está no filme de Tykwer esta curva narrativa afrouxa toda a tensão das três quartas partes anteriores. Não que o observador seja um sádico esperando pelo banho de sangue. É que a mudança de tom é brusca e forçada. No lugar do sangue que vinha sendo semeado, seqüências místicas onde o protagonista antes vilipendiado pela massa agora é idolatrado; comparando-se com os dias de hoje, estas cenas poderiam lembrar um ator de televisão ou um jogador de futebol provocando desmaios nas multidões; a hipnose das turbas é bem descrita pela grandiloqüência de filmar do cineasta, e aquelas imagens do amor coletivo ditado pela embriaguez do perfume jogado pelo aromista sobre as pessoas, remete àquelas cenas de sexo no deserto americano em Zabriskie Point (1969), do italiano Michelangelo Antonioni. Porém, esta guinada de Tykwer está mais para o misticismo adocicado de Chocolate (2000), filme americano do sueco Lasse Hallstrom, (substituamos o chocolate de Juliette Binoche pelo perfume de Ben Whishaw, e tudo se assemelhará), do que para a turbulência íntima duma imagem de Antonioni.

Uma anotação final para o desempenho de Dustin Hoffman, na pele do decadente perfumista a quem o perturbado Jean-Baptiste se associa inicialmente para topar os meios de edificar sua subterrânea trajetória de gênio do olfato; aqui Dustin está bastante mais à vontade para exibir sua criatividade de intérprete que em sua constrangedora interpretação de um professor de literatura em Mais estranho que a ficção. No frigir dos ovos, Pefume ainda é o mais original dos filmes que vi neste princípio de temporada; mas sua opção final (ou o jeito como esta opção aparece na tela) põe a perder boa parte da força que foi acumulada no restante do filme.

Por Eron Fagundes

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