PORTO ALEGRE, UM LUGAR PROVISÓRIO
 

 

09 de abril de 2007

No começo do documentário Porto Alegre, meu canto no mundo (2006), produção gaúcha rodada a quatro mãos por Cícero Aragon e Jaime Lerner, o historiador Sérgio da Costa Franco refere, com a ironia fina dos experientes estudiosos, que a cidade de Porto Alegre nasceu como um povoado provisório: colonos açorianos aqui se alojaram em trânsito para as Missões, na fronteira do Rio Grande do Sul; impedidos de ir para as regiões missioneiras dada a resistência violenta dos indígenas coordenados pelos jesuítas, os colonos acabaram ficando no povoado que de provisório se foi transformando em definitivo. Talvez para muitos de nós que aqui vivemos a cidade é bem assim ao longo de uma vida: um lugar provisório que acaba sendo o pouso definitivo.

Porto Alegre, meu canto no mundo é um filme nosso, peculiarmente nosso, escancaradamente bairrista e que assume o provincianismo de nosso meio com uma dose de poesia surpreendente, mas creio que poderá interessar ao espectador de outros centros graças a suas qualidades especificamente cinematográficas. Filme que contém muitas entrevistas (Luis Fernando Veríssimo, Eva Sopher, Moacyr Scliar, o já referido Costa Franco, Luiz Antônio de Assis Brasil, Sandra Passavento, Giba-Giba), textos literários intensamente porto-alegrenses (“O resto é silêncio”, de Erico Veríssimo; “Os ratos”, de Dyonélio Machado; poemas de Mário Quintana) e soberbas imagens aéreas articuladas com outras imagens abertas mais ao rés do chão admiravelmente submetidas a uma montagem tão econômica quanto cheia de sugestões. Uma das grandes demonstrações de perícia da montagem concebida e executada pelos realizadores é aquela em trechos do romance “Os ratos” descrevem cenários da Porto Alegre dos anos 30 enquanto na tela o filme se debruça sobre os mesmos cenários nos dias de hoje.

Porto Alegre, meu canto no mundo é um hino à cidade, um exercício do olhar sobre uma cidade, é uma narrativa do olhar onde as grandes panorâmicas aéreas (filmadas com a lente grande angular) acabam sendo uma chave para o olho humano nem sempre bem compreendida. É um filme de versos visuais. Daí por que certas questões sociais sugeridas a medo intrigam. A questão do negro, revelada pelos depoimentos do compositor e sambista Giba-Giba e pela imagem de contraponto que opõe a figura do negro fugido perseguido pelos capitães-do-mato à figura do negro atual fugindo da polícia: a cena me evocou certas elaborações histórico-diacrônicas de Quanto vale, ou é por quilo? (2005), de Sérgio Bianchi. Mas a possível inserção social em Porto Alegre, meu canto no mundo não tem a acidez de Bianchi: é na verdade mais um elemento de que se valem os realizadores para expor o que palpita na linha narrativa de Porto Alegre, meu canto no mundo: confrontar os diversos planos históricos da cidade, o ontem e o hoje (algo bem caracterizado nos trechos de “Os ratos” que sublinham visões atuais da cidade). Assim, é característica a intervenção final de Sérgio da Costa Franco: diz ele que se recusa a ser nostálgico, mas argumenta que os bons tempos já passaram, e complementa dizendo que passaram para ele, não para os jovens, para os seus netos, que vibram com a cidade. Entre o lugar provisório identificado por Franco no início e a paixão jovem da cidade observada pelo mesmo Franco no fim do filme, está a essência dos sentimentos passados por um documentário que em momento algum pretendeu abarcar o integral duma cidade, mas, ainda assim, recebeu de alguns assistentes queixas de que faltou aquele monumento ou aquela cantora porto-alegrenses essenciais para o conhecimento de Porto Alegre.

Por Eron Fagundes

| topo da página |