A UTOPIA BRASILEIRA E O BRASIL MAQUIAVÉLICO
 

 

Depois de algumas realizações curiosas, dotadas de um clima narrativo original, de que Sábado (1994) era o exemplar mais bem acabado, o cineasta paulista Ugo Giorgetti chega ao clímax de suas possibilidades com O príncipe (2001), em que ele logra uma segurança temática e formal que evoca os princípios dos dois últimos trabalhos de outro diretor em atividade em São Paulo, Alma corsária (1993) e Dois córregos (1999), ambos de Carlos Reichenbach, dois modelos de cinema intelectual bem feito no Brasil.

Sem a virulência de Cronicamente inviável (2000), de Sérgio Bianchi, Giorgetti faz em O príncipe uma análise melancólica mas implacável dos caminhos do indivíduo brasileiro contemporâneo a partir duma visão do cidadão de São Paulo, a metrópole nacional por excelência. Para examinar a conduta brasileira de hoje, Giorgetti compôs em seu roteiro duas personagens que são duas vertentes de nosso descalabro: o utopista maluco, que sofre, como ele mesmo assevera, de "desabamento central da alma" e ao levar às últimas conseqüências em sala de aula (ele é professor de história) sua noção de que a história é invenção (seria o pai da aviação, Santos Dumont, uma invenção brasileira, pois não consta das comemorações internacionais, especialmente anglo-saxônicas?), é internado como louco pela direção de sua escola; e o arrivista carreirista, para o qual o que importa é ganhar dinheiro e ascender socialmente, em suma inserir-se no mercado desprezando o idealismo. Entre o sobrinho Mário (o utopista tresloucado) e o amigo Marino (o cínico arrivista), está o impotente e passivo protagonista, um brasileiro que vive em Paris, vem ao Brasil como um intervalo em seu exílio e espanta-se e decepciona-se silenciosamente com o que vê, seus antigos amigos transformados, seu ex-amor (uma marcante Bruna Lombardi com que ele fala caracteristicamente numa cena às escuras num típico escritório paulistano, aproveitando-se o diretor-roteirista para caracterizar o momento brasileiro com o apagão, ou seja, a escassez de energia elétrica que se abateu sobre o país em tempos recentes) transformado, ele sem compreender as transformações. Incapaz de mudar o rumo das coisas, depois do suicídio do sobrinho (que ao fugir da clínica, jogou-se de um dos muitos viadutos de São Paulo), a personagem central embarca de volta para Paris.

Os diálogos são depurados e a objetividade visual de O príncipe atinge um nível que poucas vezes o cinema brasileiro apresentou. A referência a Maquiavel é passageira mas marcante; ao cognominar-se príncipe da náusea, o protagonista leva-nos a Jean-Paul Sartre. Enovelando-se em suas citações eruditas, O príncipe só se sofistica o suficiente para dar-nos um acurado retrato do brasileiro de hoje, um modelo perverso criado por anos de sociedade autoritária. Navegando por referências ao ficcionista norte-americano Francis Scott Fritzgerald (a personagem de Tornaghi estende à de Bruna Lombardi um exemplar de O grande Gastby que parece conter reminiscências sentimentais) e ao escritor argentino Jorge Luis Borges (num vídeo o irreverente professor Mário recita alucinadamente um trecho de Ficções), Giorgetti apresenta em seu filme algumas chaves intelectuais a que nem todo o público de cinema tem acesso. Azar de quem ficou no meio do caminho de sua formação. Prazer para quem sabe identificar estas chaves.

Por Eron Fagundes

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