O PROFESSOR
SEGUNDO A ANALFABETA
Deixando de lado
a simbologia meio mística e o arcaísmo lendário de seus filmes iniciais -de
que O sorgo vermelho (1987) e Lanternas vermelhas (1991) são visões
maravilhosas e precisas--, o realizador chinês Zhang Yimou está numa fase de
sua carreira desviada para pequenas histórias contemporâneas cheias de ternura
e sensibilidade. Em O caminho para casa (1999), que chega agora ao multiforme
mercado do DVD, ele conta uma história de amor (um melodrama doce, é bem verdade)
ambientada no interior da China; se Nenhum a menos (1998), sua obra anterior
e uma das mais belas películas vistas nos cinemas de Porto Alegre no ano passado,
a escola era uma espécie de centro dramático que orientava os passos das personagens,
em O caminho para casa a figura da escola está de volta, misturando-se
suavemente com a história de amor encenada.
A narrativa de O caminho
para casa dá-se em primeira pessoa. Quem conta os episódios é o filho do
casal de protagonistas. As imagens iniciais são em preto-e-branco fosco, despojado
de toda luminosidade dos primeiros Yimou; o pai de quem conta a história, um
professor de interior, morreu, e sua esposa, dolorida, quer que ele seja conduzido
pelas pessoas, a pé, pelas estradas do lugarejo. Quando a história passa a vasculhar
as memórias daquela trama amorosa, surge um colorido tênue, que é uma continuação
da tonalidade pastel que caracteriza a fotografia do filme. No final -a seqüência
do funeral e tudo o mais-volta o preto-e-branco inicial. Maravilhosa é a cena
que encerra a realização: misturam-se imagens do filho dando aulas (a única
que dará, em homenagem ao pai) e do pai em sua aula inicial, a velha mãe ouvindo
o filho, a garota analfabeta escutando apaixonadamente o professor, preto-e-branco
e cores sobrepondo-se num clima de festa visual que liga dois tempos da narrativa.
O caminho para casa,
como já ocorria em Nenhum a menos, parece retomar, criativamente, as
possibilidades de linguagem do realismo cinematográfico, inauguradas há tantos
anos por Toni (1934), de Jean Renoir. O mesmo gosto por histórias simples,
ingênuas, o melodrama da vida reelaborado criticamente. A luta do professor
por melhores condições escolares é o elemento político que se insere na história
de amor.
Outro dado que impressiona
na coerência da construção cinematográfica de Yimou é uma característica das
mulheres de seus filmes. A protagonista de O caminho para casa é uma
obsessiva. Se a jovem esposa de A história de Qui Ju (1992) percorre
a cidade para provar a inocência de seu marido, resgatando-o moralmente aos
olhos da comunidade, e a garota assistente de educação sofre um itinerário de
busca de seu aluno que se ausentou das aulas em Nenhum a menos, a menina
apaixonada de O caminho para casa corre pelas estradas nevadas (até doente,
em febre) em busca do professor, tão diferente dela, mas que ela idolatra a
partir de sua voz nas aulas; depois, quando a menina envelhece e o marido morre,
a velha viúva quer, obsessivamente, o funeral à sua maneira. São as obsessões
das mulheres de Yimou.
Um dos lances dramáticos antológicos
deste filme pleno é aquela seqüência em que a garota corre por atalhos em busca
da carroça que leva para a cidade seu amado; ela quer despedir-se e dar-lhe
os bolinhos que fez para ele. Escorrega no terreno, cai, o prato espatifa-se,
os bolinhos perdem-se na grama. Há um corte que mostra, em plano geral, a carroça
ao longe afastando-se, surge em off o choro desesperado da garota. Este choro
inunda o plano geral e a paisagem de interior. Trata-se duma seqüência em que
todos os fotogramas estão em seus lugares exatos para atingir a emoção do espectador.
Por Eron Duarte
Fagundes