15 de março de 2008
Propriedade privada (Nue propriété; 2006), uma típica produção de rigor estético europeu dirigida pelo jovem realizador belga Joachim Lafosse, é um filme de rara profundidade e que foge inteiramente aos padrões comerciais do cinema. Como em certos filmes dos franceses Robert Bresson (Uma mulher suave, 1969) e Eric Rohmer (O joelho de Claire, 1970), Lafosse abdica da música na faixa sonora, deixando bater nos ouvidos do espectador tão-somente as vozes dos atores e os ruídos-ambiente trazidos pelo som direto. Só no último movimento do filme, quando a mãe e o pai separados juntam os cacos do cenário onde o filho se acidentou no conflito com seu irmão gêmeo, e depois no travelling que abre (afastando-se: a câmara afasta-se) a ambientação campestre da propriedade, é que surge o comentário musical, uma inesperada e imponente peça sinfônica que faz verter a emoção que o rigor estilístico do cineasta vinha mantendo numa estrutura muito cerebral e despojada. Pois é este despojamento bressoniano-rohmeriano o dado mais relevante de Propriedade privada.
O que está em cena em Propriedade privada é a convivência afetiva perigosa entre uma mãe separada (que mantém um caso semi-oculto com um vizinho) e seus dois filhos gêmeos situados naquela ambígua segunda fase da adolescência onde a impressão de que já estão maduros para viver pode gerar equívocos de avaliação como a da mãe do filme. A tragédia final (deixada no corpo do filme como uma elipse) nasce inteiramente deste equívoco materno.
Todo feito de planos-seqüência fixos, Propriedade privada vai concluir-se com um movimento de câmara exagerado como um desmaio que se segue a uma banalidade qualquer; são especialmente notáveis alguns longos planos fixos em que as personagens revelam suas inter-relações à mesa de refeições. O movimento de câmara e a música finais são os gritos abafados pela contenção do filme.
Preciso naquilo que extrai dos atores, Lafosse contou com uma atriz extraordinária no papel da mãe, Isabelle Hupert, vista no final do ano passado por aqui na obra-prima A comédia do poder (2006), do francês Claude Chabrol; entre a dura juíza de Chabrol e esta perplexa mãe de Lafosse, a intérprete exibe sua invejável versatilidade. Os irmãos que vivem os gêmeos (Jérémie Renier e Yannick Renier) e Kris Cuppens na pele do namorado da mãe compõem uma afinada partitura interpretativa.
Propriedade privada foi a tradução incorreta para o original francês. Nua propriedade, a tradução equivalente, é um conceito jurídico que significa que se detém a posse ou o usufruto (o direito de uso) mas não a plena propriedade, que incluiria o direito de dispor para venda ou outras transações. É o que ocorre com a mãe do filme. Não-somente porque os filhos se rebelam contra sua intenção de vender a propriedade, mas ainda porque a propriedade que esta mãe tem de si mesma é nua, não plena, em face da interferência dos filhos.
Houve quem reclamasse do final trágico do filme. Mas este trágico está contido pela própria elipse em que o cineasta o transformou: está longe dum melodrama conformista. Pode ser que Propriedade privada não tenha ousado tudo o que poderia em seu tema e com tal elenco; mas cumpre com extrema dignidade seu papel de cinema. Também o espectador curioso poderá reflexionar sobre os abismos que separam o plano geral fixo duma estrada perdida entre montanhas por onde desaparece o caminhante John Rambo no término de Rambo IV (2007), de Sylvester Stallone, (um filme onde tudo é ação e movimento), do plano móvel que igualmente dá numa estrada no fim de Propriedade privada (um filme onde tudo são gestos quase parados e interioridade).
Por
Eron Fagundes