MUDARAM AS VESTES: O CORPO É O MESMO
 

 

10 de outubro de 2005


O realizador brasileiro Sérgio Bianchi criou seu próprio gênero de filmar, a que se poderia chamar documentário de reflexão e na verdade é uma fusão de vários excertos de linguagem audiovisual. Quanto vale ou é por quilo? (2005) é o novo exercício do cinema corrosivo de Bianchi, duro e amargo como os anteriores, onde ao questionamento estético corresponde uma ampla devassa dos mecanismos sociais do país, os aparentes e os guardados em escuros armários de intenções.

Bianchi sempre foi um crítico implacável da linguagem cinematográfica e do universo que esta linguagem deve retratar, desde o antigo e maldito Romance (1987) até o recente Cronicamente inviável (2000), ambos viagens meio doidas pelas estruturas carcomidas do país. Em Quanto vale ou é por quilo? O cineasta depura e apura ainda mais esta maneira de fazer cinema, que ora se vale dos aspectos duma reportagem televisiva, ora é uma recriação ficcional como se fossem diversos filmes curtos, mais diante evoca uma narrativa sociológica de irônico cunho científico como certas produções do franco-suíço Jean-Luc Godard na década de 60; mais do que nunca, a habilidade de Bianchi funde os disparates de seus pedaços num todo que tem sentido pleno e onde enxergamos uma unidade construída com o suor da montagem.

A reportagem cinematográfica em que se converte Quanto vale ou é por quilo? se abre em alguns “ovos de Colombo”: são coisas tão evidentes que surpreende, depois que o cinema desvenda nossos olhos, como não percebemos antes; com uma consciência sedimentada por mecanismos sociais que passam uma idéia de certeza, o espectador sente que estava mergulhado numa espécie de falsidade e conformismo. A realização de Bianchi destrói a segurança de nossos raciocínios lógicos; então, como retratar um país maluco senão com uma forma maluca de filmar?

A criatividade específica do filme nasce dum achado de Bianchi: lado a lado, um filme de época e um filme contemporâneo, a história da negra fugida do século XVIII e a da negra rebelde e denunciante do século XXI, a figura do capitão-do-mato e a do matador de aluguel. Com extrema felicidade, Bianchi estabelece os paralelos e as associações entre o antigo mundo escravocrata e esta nossa época de escusos interesses filantrópicos; aqui não estamos mais diante duma crônica de época que metaforiza o tempo presente (Os inconfidentes, 1972, de Joaquim Pedro de Andrade), mas sim diante duma reflexão documentada: mudaram as vestes da sociedade, mas o corpo social brasileiro e suas doenças permanecem incuráveis.

A miséria como um produto de venda no mercado pós-capitalista é o assunto de Quanto vale ou é por quilo? Em se tratando de Brasil, a miséria está basicamente com os negros: Lázaro Ramos vive uma personagem emblemática, simulando um “navio negreiro” no interior duma prisão de hoje; o ator negro Milton Gonçalves aparece só com sua voz, fazendo a locução, onde o texto arquivado na memória nacional recaptura a escravidão. A miséria é usada pelos ricos, perpetuamente, para se manterem no topo, como propaganda da boa vontade dos que têm para com os que não têm; a miséria é usada pelos ricos, perpetuamente, para se manterem no topo, comprando miseráveis famintos que vão matar aqueles miseráveis rebeldes ou fugidos do sistema oficial. Na cena que Bianchi intercala nos créditos finais ele refaz a seqüência de conclusão da narrativa em que o matador exterminava a negra rebelde: o que seria se os miseráveis se unissem, negociando entre si, para derrubar os poderosos?

Cabe ainda ressaltar que Quanto vale ou é por quilo? compõe uma imagem amarga e dolorosa do negro brasileiro, contrapondo-se a alguns filmes recentes em que se explora uma dita veia erótica da pele preta, algo que, segundo o sociólogo Gilberto Freyre em Casa grande & Senzala (1933) não é intrinsecamente dos descendentes dos africanos mas fruto do imaginário branco voluptuoso sobre estes povos. Na cena inicial de Garotas do ABC (2004), de Carlos Reichenbach, a negra Michelle Valle vive um striptease de tirar o fôlego; o começo de Sal de prata (2005), de Carlos Gerbase, não é diferente: um primeiro plano orgiástico de Camila Pitanga. Os negros do filme de Bianchi espirram sangue e vômito.

Por Eron Fagundes

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