31
de maio de 2005
Quase
dois irmãos (2004), rodado por Lucia Murat, é na
verdade uma metáfora do cinema brasileiro. Resgatando
um pouco sua experiência de presa política na década
de 70, que ela revisitara em seu tenso semidocumentário
de estréia, Que bom te ver viva (1989), artificioso e
emocionante ao mesmo tempo, Murat descortina em seu atual filme,
mais do que as questões políticas que aborda, a
questão cinematográfica básica de nosso
cinema: quem faz cinema no Brasil e de que assunto trata essa
gente que faz cinema no Brasil? Como já demonstrara o
ensaísta Jean-Claude Bernadet em seu clássico livro
Brasil em tempo de cinema (1967), a estrutura cinematográfica
de nossas películas se compõe à sombra da
estrutura social da classe média; por exemplo, em Vidas
secas (1963), filme de Nelson Pereira dos Santos, um intelectual
de nossa classe média, o povo do sertão nordestino
aparece na tela, mas quem o joga na tela é um indivíduo
da pequena-burguesia. Em Quase dois irmãos Murat se esforça
por entender a personagem de Jorginho, o negro traficante do
morro, mas seu espelho é a criatura de Miguel, deputado
federal que dividiu a infância e depois uma cela nos anos
de chumbo com Jorginho; em O cárcere e a rua (2004) outra
diretora da pequena-burguesia, Liliana Sulzbach, tenta a empatia
com indivíduos muito diferentes dela; se o realismo e
a engenhosidade de Liliana são inquietantes, a perplexidade
de metáfora e de indefinições de Quase
dois irmãos leva o espectador por caminhos transversos.
Murat
até que não se perde ao misturar os três
tempos de sua narrativa: a infância (escassas imagens),
o tempo dos protagonistas na prisão e a atualidade em
que Miguel visita Jorginho na cadeia enquanto no morro carioca
a violência corre solta à beira do carnaval que
a cineasta capta com imagens esquisitas que poderiam ser assinadas
pelo realizador italiano Federico Fellini. O conjunto interpretativo
(com atores diversos fazendo as personagens em cada faixa etária)
se desorganiza um pouco, mas Murat tem suficiente habilidade
para montar seu filme permitindo que as flutuações
dos intérpretes se dissolvam e possam ser bem digeridas
pelo observador; a cineasta logra mudar a aridez política
de sua mensagem em espetáculo ajudada pelas possibilidades
policiais das aventuras do morro.
A
participação do escritor Paulo Lins, autor do
romance Cidade de Deus (1997), no roteiro confere ao linguajar
do morro uma notável veracidade que Lucia nem sempre aproveita
do ponto de vista da direção, suavizando pela montagem
o impacto dos verbos populares. A fotografia inicialmente pastel
e depois descolorida do filme serve a ajudar nesta impressão
de álbum de lembranças que é Quase
dois irmãos.
Se
fôssemos desenhar um gráfico para o cinema brasileiro,
cuido que Quase dois irmãos seria a reta que liga o cheiro
de povo de Cidade de Deus (2002), o filme que Fernando Meirelles
extraiu do livro de Lins, ao já anacrônico mas sempre
necessário debate político estampado com objetividade
em Pra frente, Brasil (1983), aquele filme de Roberto Faria que
aproveitou os estertores da ditadura militar para lançar
a semente da denúncia das torturas políticas no
Brasil. Desta intersecção é que a realização
de Murat faz surgir sua instância de metáfora dos
problemas cinematográficos brasileiros gerenciados pelos
problemas sociais.
Por Eron Fagundes
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