VISÃO BRASILEIRA
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20 de setembro de 2004

Depois de alguns constrangedores fracassos (Jubiabá, 1986; A terceira margem do rio, 1993; Cinema das lágrimas, 1995) o cinema de Nelson Pereira dos Santos volta à sua boa forma em Raízes do Brasil (2003), documentário em duas partes que trata da vida pessoal e intelectual do pensador paulista Sérgio Buarque de Holanda. Em 2000 e 2001 Nelson já mostrara sua argúcia documental ao rodar para a televisão Casa-grande & senzala, extraído da personalidade do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Diz-se que Nelson fechará a trilogia com um filme que trata de Caio Prado Jr. e seu Formação do Brasil contemporâneo (1942).

Isto me leva ao prefácio que, em 1967, o crítico literário Antônio Cândido fez para uma edição de Raízes do Brasil (1936): “Os homens que estão hoje um pouco para cá ou um pouco para lá dos cinqüenta anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de passado e em função de três livros: Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre, publicado quando estávamos no ginásio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar; Formação do Brasil contemporâneo, publicado quando estávamos na escola superior.” Nelson parece estar seguindo o roteiro estabelecido por Cândido para pensar sobre o Brasil.

O ensaísta Antônio Cândido é uma das figuras iluminadas do documentário de Nelson Pereira dos Santos; quem, como eu, é apaixonado por livros e habituou-se desde a adolescência a devorar suas análises literárias enfurnando-se em mal iluminadas bibliotecas, se emociona com sua figura octogenária em cena, lúcida e deslumbrante como sempre ao falar das loucuras da paixão por livros de seu amigo Sérgio, que também são as loucuras dele, Cândido, e de todos os que amamos estas brochuras encadernadas. O episódio indiscreto que Cândido revela de Sérgio, que este ocultava de sua esposa Maria Amélia seus gastos excessivos com livros (afinal tinham sete filhos para criar e muitas despesas), chegando em casa e fazendo com que os volumes entrassem pelos fundos pela mão da empregada que os depositava na biblioteca sem que a patroa viesse a saber da extravagância de compras do patrão. É um detalhe trivial da vida de um homem visto com uma certa solenidade hoje, mas é também um espelho da irrefreável atração pela leitura, característica básica de Sérgio. Outro dado íntimo: tanto nas espontâneas manifestações dos parentes quanto na palavra elaboradamente intelectual de Antônio Cândido surge a convivência dialética entre o sisudo pensador (definido como imagem solene por uma neta) e um espírito brincalhão e leve (a lembrança, eternizada por uma fotografia, de um avô com uma peruca esquisita; segundo Cândido, este jeito travesso seria herança de um homem formado pelos modernistas de 1922).

A primeira parte do documentário de Nelson agrupa depoimentos de familiares, filhos, netos, bisnetos, tudo coordenado pela presença devastadora e entusiasta da viúva Maria Amélia, entusiasmo de falar do homem de sua vida que é também um dos homens basilares do pensamento brasileiro. A segunda parte fala mais, pela boca de diversos narradores, que são os próprios familiares de Sérgio (por exemplo, a neta de Silvia Buarque lê desdramaticamente trechos de Raízes do Brasil, um pouco à maneira de certos atores do diretor franco-suíço Jean-Luc Godard nos anos 60), da trajetória intelectual do homem: e aí a criatividade cinematográfica de Nelson impede o ranço acadêmico que poderia advir da leitura do rol de títulos de Sérgio.

O ponto polêmico de Sérgio Buarque de Holanda foi erigir em definição do homem brasileiro o homem cordial. O próprio Sérgio parece recuar um pouco logo depois da frase famosa e acrescenta: “Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade.” Talvez significativa numa determinada quadra da vida brasileira, a concepção da cordialidade pode parecer hoje ultrapassada; mas não retira o brilho de um pensador de que o cineasta Nelson Pereira dos Santos usa para estabelecer mais uma de suas apuradas visões brasileiras.

Por Eron Fagundes