UMA PORRADA CINEMATOGRÁFICA
 

 

27 de junho de 2006

A composição da imagem e o nervosismo da montagem de Rejeitados pelo diabo (The devil’s rejects; 2005), filme norte-americano dirigido, escrito e produzido por Rob Zombie à margem dos grandes estúdios e que, sem distribuição comercial nos cinemas brasileiros, foi selado diretamente em dvd, são extremamente agressivos desde seus aspectos conceituais; os planos enforcados sobre os rostos de personagens que representam o grotesco do terror e os frenesis dos cortes bruscos jogam o espectador numa claustrofobia de sangue e maldade que tornam esta experiência cinematográfica autenticamente eletrizante. A agressividade de Zombie não é somente uma questão temática (espalhar sangue e atitudes abjetas de suas criaturas), mas ainda e muito mais uma questão formal: o jeito truculento de enquadrar e o atrevimento  dos cortes constantes que contaminam seu senso de montagem cinematográfica, criando as mais arrepiantes seqüências de planos curtos da história do cinema.

Equivocadamente incluído num ciclo de faroeste profano (profano é um adjetivo que cabe perfeitamente, mas o substantivo faroeste é falso), Rejeitados pelo diabo na verdade namora dois outros gêneros cinematográficos: o policial e o horror, que às vezes se unem num gênero só, o policial de horror. Neste sentido se pode enxergar o embrião da narrativa de Zombie em Quadrilha de sádicos (1977), dos tempos em que Wes Craven fazia bons filmes, ou Elite dos assassinos (1975), um exemplar da amoralidade violenta de Sam Peckinpah; eu não creio que o filme de Zombie tenha muitas relações com o universo de Donald Siegel, nem mesmo com Meu nome é Coogan (1968), apesar de algumas aparentes semelhanças do argumento inicial, um xerife à caça de sanguinário bandido. Parece-me meio deselegante ou desrespeitoso com a extrema originalidade deste projeto cinematográfico de Zombie um comentarista atribuir-lhe referências do passado cinematográfico que devem existir como influência em seu processo de criação mas são dissolvidas por seu demoníaco e incendiário estilo de filmar; sim, eu sei, todos aludem, o próprio diretor revela, os signos do imaginário do filme de horror estão ali, Zombie cultua o gênero, interessou-se até por nosso horror caipira do Zé do Caixão; todavia, Rejeitados pelo diabo transcende os limites de filme de gênero: é uma verdadeira gandaia gótica de imagens que perturba o tempo inteiro.

Não creio que os apreciadores habituais dos filmes de horror (que geralmente esperam mais sustos do que brutalidade) vão desfrutar de Rejeitados pelo diabo. É uma obra que exige estômago e cinefilia: é preciso acatar a natureza suja do homem ao mesmo tempo em que se tem a percepção de certos mecanismos de linguagem que expõem esta natureza.

A câmara de Rejeitados pelo diabo é sádica, desgovernadamente sádica mesmo, freqüenta muito a gratuidade da violência, utiliza uma estética desgovernada desta violência (como em Peckinpah, mas num modelo pós-moderno solto e mais sem intenções), mas, por trás das vísceras expostas da película, há um cérebro privilegiado que comanda tudo: Zombie é este cérebro. Trata-se um pouco de deixar correr sem peias a filmagem, a montagem, mas um tanto de dar forma (ainda que caótica) aos caos que deve ser mantido como caos. Seria talvez o filme que o brasileiro José Mojica Marins (o Zé do Caixão) rodaria se tivesse o talento de Rob Zombie.

A estrela mesmo de Rejeitados pelo diabo é o próprio diretor, que manipula a câmara de maneira notável e depois ainda brinca na sala de montagem; os puristas talvez não gostem do que direi, mas Zombie é a estrela de seu filme como o norte-americano Orson Welles e o francês Alain Resnais eram dos seus. São brilhos de direção que empanam a luminosidade que possa haver no elenco. Mesmo assim, não se pode deixar de sublinhar que os intérpretes são um dos trunfos da realização, é em boa parte nas interpretações que explode esta voracidade de comer tudo o que está pela frente do filme, inclusive a necessidade de devorar o estático espectador na sala de cinema ou na poltrona de casa; Sid Haig é uma aula de malvadeza, assim como Sheri Moon Zombie (esposa do diretor) empresta uma torta sexualidade à sua animalidade sanguinária; mas quem rouba a cena é William Forsythe como o xerife que, ao topar os bandidos, revela o mesmo padrão de crueldade dos marginais. Assim, Rejeitados pelo diabo, ao colocar em cena um policial sedento de vingança, captura o instinto de chacal de todos nós; quem, ao ver ou ouvir sobre ações de bandidos muito cruéis, nunca pensou em esquartejá-los ou incinerá-los vivos? No fundo, somos todos rejeitados pelo diabo de tão ruins que somos.

Obra marginal por excelência, Rejeitados pelo diabo restitui ao cinemaníaco o gosto por um cinema elétrico e altamente original. Deve ser rejeitado, inevitavelmente, pelos conformistas e pelas sensibilidades frágeis.

Por Eron Fagundes

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