26
de janeiro de 2004
Quando
um diretor de cinema opta pela adaptação cinematográfica
de um romance, ele vai escolher as cenas que interessam ao tipo
de filme que ele está fazendo. Robert Benton é um
cineasta que tem quase a mesma idade do escritor Philip Roth,
ambos norte-americanos; Benton decidiu verter em celulóide
o mais recente livro de Roth, A marca humana (2000), e o resultado é a
fita Revelações (The human stain; 2003).
Benton é conhecido por seus melodramas amorfos, de que Kramer
versus Kramer (1979) é o exemplar de maior sucesso
de público. Roth é apreciado por sua análise
ferina da sociedade americana dentro duma linguagem sarcástica
e provocativa: O teatro de Sabbath (1995) talvez seja sua obra-prima.
Para quem conhece a filmografia de Benton e a ficção
de Roth, nada mais distante.
Quero
aqui estudar a separação que se estabelece
entre o filme e o livro a partir duma cena que está no
livro e ausenta-se do filme. No romance de Roth uma personagem
importante é a francesa Delphine Roux, professora, colega
de universidade do protagonista Coleman Silk; no filme a importância
da criatura se dissolve, pois Benton está mais interessado
num caso de amor entre duas pessoas cultural e socialmente diferentes
sem aprofundar os abismos culturais e sociais que afastam estas
duas pessoas. Há na narrativa de Roth uma cena que Benton
desprezou, assim como desprezou a própria personagem de
Delphine: a mulher está numa biblioteca, lê um tratado
sobre a melancolia escrito por Julia Kristeva enquanto lhe chama
a atenção um homem que lê justamente um texto
do marido de Kristeva, Philip Sollers, Delphine deixa-se leva
por fantasias acerca do homem, está no clímax destas
fantasias quando uma moça muito mais jovem se aproxima
do leitor de Sollers e ambos saem juntos. Que vem depois? Delphine,
cuja atração por Coleman é insinuada habilmente
no livro e passa em brancas nuvens no filme, coloca no correio
a carta anônima em que acusa Coleman, velho intelectual
setentão, de subjugar uma faxineira de trinta e poucos
anos; Delphine deixara-se levar pela raiva e pelo ciúme:
do homem desconhecido e de Coleman e sua vitalidade na velhice.
Benton e seu roteirista Nicholas Meyer desprezaram a cena em
seu filme, o que é um direito; mas esta opção
indica a narrativa fácil, ingênua, nada conflitiva
de Revelações, contrastando com as investigações
mais profundas de A marca humana.
Tudo é muito simplificador em Revelações.
A utilização do narrador em primeira pessoa, que
no romance de Roth é sutil e desbravadora (quem narra
o livro é um conhecido do protagonista), no filme de Benton é linear,
mais verbal que cinematográfica: aí faltou desrespeitar
os caminhos literários de Roth em nome da criatividade
fílmica. A cena final da conversa do narrador com o ex-marido
da faxineira pescando é muito mais extensa e inquieta
no livro.
Kidman
está tecnicamente bem, mas pouco convence como
uma mulher simples do povo. Anthony Hopkins é um bom ator,
mas o roteiro não lhe proporcionou compor a criatura complexa
com que damos no texto de Roth. Enfim: Roth, nas mãos
de Benton, é um aleijão literário.
Por Eron Fagundes
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