INJUSTO DESCASO
 

 

03 de outubro de 2005

Esnobado pelos “donos da verdade da crítica cinematográfica brasileira”, Sal de prata (2005), filme rodado pelo gaúcho Carlos Gerbase, é o ponto da maturidade criativa do realizador de Inverno (1983) e Tolerância (2000). É cinematograficamente sua obra mais avançada; infelizmente caiu num tempo em que se prefere louvar a mediocridade e tachar qualquer invenção de pretensão: Gerbase não é nenhum pretensioso, como chegaram a aduzir: sabe o cinema que quer fazer e o faz com uma naturalidade que escapa à miopia de alguns. É um belo filme no momento errado do cinema brasileiro; como o são O cárcere e a rua (2004), de Liliana Sulzbach, e Jogo subterrâneo (2005), de Roberto Gervitz, duas experiências fílmicas que contrariam os obtusos padrões críticos de hoje e parecem permanecer à sombra da vitrine elaborada por certos “ilustres pensadores”; espera-se que o futuro possa corrigir estes equívocos.

Gerbase cruza a vida e o cinema em seu filme de uma maneira preciosa, brilhante mesmo. Como ocorria em O show deve continuar (1979), do norte-americano Bob Fosse, um diretor de cinema, estressado por suas relações profissionais e sentimentais, Rudi Veronese, no início do filme de Gerbase vai deflagrar uma investigação sobre sua vida de artista e homem, movida especialmente por sua namorada Cátia, mas circundada por seus amigos do cinema e também por sua atriz e possível amante Cassandra. A teia de filmes dentro do filme se mistura com as teias amorosas sem nenhum esforço narrativo, pois Gerbase domina seu ofício; apesar de falar da confusão das cabeças das pessoas, Gerbase em momento algum perde o fio de seu raciocínio estético, oferecendo ao espectador um espetáculo tão sinuoso quanto claro em seu descortinar de metáforas visuais.

Brincando com o próprio conhecimento do fazer cinematográfico, Gerbase nunca é árido, pois usa com habilidade os elementos comerciais e artísticos de que dispõe: Camila Pitanga abre o filme num primeiro plano de seu rosto e seus ombros nus simulando um orgasmo (felação ou masturbação?) em que diz um texto que ironiza a censura etária; depois é Maria Fernanda Cândido quem vai conduzir, mais com sua beleza e a hábil direção de Gerbase do que com seu poder de intérprete, as complexidades (que provocativamente aqui e ali se superficializam) da trama.

Cheio de citações cinematográficas, com cartazes de filmes aparecendo insistentemente nas imagens (o famigerado Cidadão Kane, 1941, do americano Orson Welles, à frente) e a referência nos diálogos diante do volume do livro-roteiro em espanhol do filme Interiores, 1978, do americano Woody Allen), Sal de prata busca uma aproximação musical em sua narrativa, titulando seus capítulos de andante, adágio, largo, allegro; do ponto de vista da textura dos enquadramentos a musicalidade de Gerbase é discutível, mas sua insistência em atulhar a faixa sonora da solenidade dos clássicos é constantemente incômoda por destoar da linha do filme. Porém, trata-se dum senão pequeno, nunca chega a prejudicar o resultado final da realização.

O descaso com Sal de prata é injusto, especialmente quando se sabe que o jornalismo cinematográfico oficial bravateia muitas vezes em defesa de filmes de passagem.

Por Eron Fagundes

| topo da página |