CUMPLICIDADE COM A INGENUIDADE DO PÚBLICO
 

 

30 de julho de 2007

Jorge Furtado, apesar de seu aparelhamento cinematográfico que se preocupa com as questões da linguagem, sempre esteve mais perto dos aspectos comerciais do cinema que das encucações duma vanguarda obscura. Em seu melhor filme, o curta-metragem Ilha das flores (1989), esta opção se evidenciava dialeticamente: construída como um mosaico de referências visuais, literárias, sociológicas (um material de montagem que poderia assemelhar-se ao cérebro-imagem do alemão Alexander Kluge), a pequena narrativa fazia destes áridos elementos uma força de comunicação bem brasileira, longe das asperezas germânicas de Kluge. Uma criatividade comercial, eis o que propunha Furtado desde aqueles anos.

(De As filhas do fogo, 1978, de Walter Hugo Khouri, a Nossa Senhora de Caravaggio, 2007, de Fábio Barreto, o cinema brasileiro se tem aqui e ali enamorado dos cenários da serra gaúcha. Talvez porque seja em Gramado, uma das características cidades da região serrana, que ocorra, durante o inverno, desde a década de 70, o Festival de Cinema Brasileiro, hoje um festival latino-americano.)

Saneamento básico, o filme (2007) é a mais recente realização de Furtado e dá ao espectador de seu cinema (tanto aquele mais culto e interessado em acompanhar seu domínio fílmico quanto o assistente que vai ao cinema para se divertir com anedotas) uma sensação ambígua. As costuras do filme estão cheias daquelas frivolidades mal resolvidas que fizeram Meu tio matou um cara sucumbir terrivelmente; mas estes pontos de cosimento, em Saneamento básico, são utilizados metalingüisticamente por Furtado, tem em si a esperteza do artista, o patético não é a tolice em si mas é adrede procurado por um cineasta cônscio de seu ofício e que quer captar os tropeços amadorísticos do meio (humano e visual) que ele propõe retratar. Mimetismo hábil de Furtado, é claro: de Furtado e de seu grupo de atores amigos, todos muito bons; como todo realizador, Furtado tem seu elenco-time afinado com sua estética.

Saneamento básico não é tão bom na costura dos cosimentos aludidos como em O homem que copiava (2003); mas é certamente mais forte em driblar sua “dança no abismo” que aquilo que se vê em Meu tio matou um cara.

(Furtado rodou seu filme nos arredores da cidade serrana de Bento Gonçalves e criou um distrito fictício, Linha Nova, onde um grupo de moradores pressiona as autoridades para a construção duma fossa sanitária que resolva os problemas cloacais da localidade. A personagem de Fernanda Torres é a líder deste movimento; não conseguem dinheiro para a fossa, mas logram uma verba para um vídeo; as criaturas roteirizam e filmam uma história de monstro para chamar a atenção do público para a  ecologia e a poluição das matas e dos rios, até toparem com o filmador de casamentos vivido com extremo humor por Lázaro Ramos, o qual vê nesta associação com os comunitários a oportunidade de mostrar sua arte sem ter de ir para Porto Alegre. Em Bento Gonçalves mesmo a arte acontece. Vivi em Bento Gonçalves até meus dezessete anos e partilho desta inquietação da personagem de Lázaro, até onde os limites interioranos turbam a realização profissional ou artística de alguém. Sinto às vezes falta daquelas origens e gostaria de experimentar o que a vida faria de mim se não tivesse saído de lá; poderia pelo menos ser uma personagem de Furtado; fio que não uma personagem frustrada.)

Saneamento básico, o filme faz a cobertura de dois assuntos. A questão da poluição que gera os monstros, não tão visíveis e mais sorrateiros na vida real que no cinema, e isto está tanto no extraordinário desenho animado japonês Nausicaa (1984), de Hayao Miyazaki, quanto na pastelada visual sul-coreana de O hospedeiro (2006), de Bong Joon-ho. O outro assunto da fita de Furtado é o que parece interessar mais ao realizador, um formalista: o próprio cinema, descrever com seu conhecimento de causa a cozinha do cinema. Furtado, inclusive, utiliza um gancho de outro filme gaúcho, Sal de prata (2005), de Carlos Gerbase, que na primeira cena mostra a personagem de Camila Pitanga falando do próprio filme como se estivesse se masturbando. As possibilidades interpretativas da sensualidade de Camila são reaproveitadas por Furtado em Saneamento básico, pois é ela quem deve ser devorada pelo monstro da fossa e é ela quem faz a estrela do vídeo comunitário que vai pregar a necessidade da fossa sanitária, sub-liminarmente.

Furtado é cúmplice com a ingenuidade do público, ou aquilo que ele imagina que o público seja. O cineasta, cujo aparelhamento estético e cultural é conhecido, baixa a guarda de seu saber para ser, como ele sempre quis, mais comercial. Mas, sendo este público que Furtado procura tão pouco interessado naquilo que mais interessa ao realizador, o próprio cinema, seu funcionamento, suas relações com a vida, vê-se com um certo incômodo a ginástica que é feita, sobre uma ironia ao mesmo tempo enviesada e adrede superficial, em cima dos eventos de realização cinematográfica que poderiam aborrecer a platéia mais ávida por consumir uma historinha bem feita como aquela de Houve uma vez dois verões (2002).

Por Eron Fagundes

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