28 de fevereiro de 2008
Certas coisas na genética da imagem de Sangue negro (There will be blood; 2007), o novo filme do norte-americano Paul Thomas Anderson, remetem a memória do cinemaníaco à estruturação dos quadros fílmicos de Cinzas no paraíso (1978), uma das obras-primas de Terrence Malick, também um realizador intrínseca e teluricamente americano como Anderson. Talvez os grandes planos abertos sobre uma terra que começava a ser explorada pelo homem, talvez as iniciantes estradas de ferro aqui e ali, certamente o espírito de um início de civilização. Claro: sem as ambigüidades metafísicas de Malick. A alucinação mística vivenciada histericamente e de maneira muito americana parece às vezes ter sido extraída de Entre Deus e o pecado (1960), do igualmente norte-americano Richard Brooks; evidentemente que sem o controle clássico de Brooks. Com uma dedicatória final a outro ilustre cineasta norte-americano, Robert Altman, já falecido, Anderson parece exorcizar outro de seus fantasmas estéticos: as características tentaculares do cinema de Altman em vários filmes estavam presentes em Boogie nights (1997) e essencialmente em Magnólia (1999); agora, em Sangue negro, centralizando a ação de seu filme na personagem vivida em desempenho extraordinário por Daniel Day-Lewis, o realizador dá uma consistência e uma profundidade cinematográficas que ele ainda não atingira em seus outros trabalhos.
Extraído do romance Oil, de Upton Sinclair, Sangue negro busca acompanhar a saga da exploração do petróleo na Califórnia nos primeiros anos, fins do século XIX. Daniel Plainview, a personagem de Day-Lewis, é um ambicioso duro na queda, capaz de enfrentar tanto a perigosa natureza das minas quanto um acidente de trabalho que deixa surdo seu pequeno filho ou ainda a tresloucada ação de fanáticos religiosos. Como uma figura típica, Plainview representa a própria ambição americana, que teria passado por cima de tudo (da família, inclusive) para construir a civilização material que aí está. Anderson retrata a ambição de seus patrícios com um rigor clínico desde as primeiras imagens que mostram quase documentalmente os trabalhos nas minas de petróleo e os ribombantes acidentes que não deixam de ocorrer; destituindo seu filme de emoções epidérmicas, Anderson às vezes compensa esta aparente frieza pelas composições visuais laboriosas e grandiloqüentes. O rigor clínico de Anderson não desaparece nem mesmo no final, quando a ambição da personagem se permuta com a raiva e os largos gestos do ator mostram a esquizofrenia violenta da criatura ao contracenar com o religioso vivido por Paul Danos; a tensão perversa e mortal imprimida por Day-Lewis a Plainview é a mesma que Tom Cruise põe na tela em Magnólia, o que identifica mais a personalidade do cineasta que a do ator.
Cabe ressaltar que, para além da pura ambição, uma figura como a de Daniel Plainview se estabelece como um panfleto contra a humanidade. É o próprio Plainview quem declara em cena o ódio que qualquer pessoa lhe inspira. Este ódio vai ter seu ponto mais crucial quando, diante do filho já casado e que o procura para negócios, Plainview explode contra o rapaz, dizendo que ele é um bastardo encontrado numa cesta. A dicção forte e reiterativa de Day-Lewis, sublinhada pela identididade de sons das palavras inglesas (aliteração) “bastard” (bastardo) e “basket” (cesta), ecoam perversamente pela cena sonora. Este ódio paterno-filial, por sua crueza, só topa paralelo numa seqüência assemelhada em Sarabanda (2003), a obra-prima testamentária do sueco Ingmar Bergman. Mas se a reflexão ácida de Bergman é um tratado de filosofia em imagens, aquilo que é buscado por Anderson na seqüência deriva mais duma visão social, a personagem como fruto de sua experiência (existência) e não de uma suposta essência (a alma em si). Enfim, são ligações que o observador pode fazer livremente, sem se ater a um entrelaçamento necessário entre as referências de que usa.
Por
Eron Fagundes