15 de setembro de 2006
Sarabanda (Saraband; 2003), as novas perturbações audiovisuais do cineasta sueco Ingmar Bergman, não deverá ter exibições nos cinemas, como já não tivera sua realização anterior, o extraordinário O mundo de luz e sombra (1997), produzido para a televisão, como tudo o que Bergman fez depois de Fanny e Alexandre (1982), seu anunciado mas falso testamento cinematográfico; mas, ainda que lançado exclusivamente em dvd, o novo Bergman é destaque absoluto de qualquer temporada de cinema que se preze, ainda mais neste princípio de século XXI onde descobrir grandes filmes é garimpagem difícil. Sarabanda é vendido como a continuação de Cenas de um casamento (1974), mas esta propaganda é outra falsidade, pois se trata de outro filme, bastante diverso; Cenas de um casamento, provavelmente o trabalho mais popular do diretor nórdico, foi-se desdobrando ao longo do tempo, em Da vida de marionetes (1980) Bergman tomou duas personagens de fundo do filme de 1974, trouxe para um enforcado primeiro plano de rostos e armou outra angustiada reflexão sobre o casal contemporâneo. Em Sarabanda Bergman utiliza o mesmo casal que se destroça ao longo de Cenas de um casamento, Johann e Marianne; o mote estrutural de Sarabanda é a visita que Marianne decide fazer a Johann, isolado com seus livros em sua casa de interior: é Marianne quem apresenta num prólogo e encerra num epílogo as histórias abissais que cruzam tensamente pelas impecáveis imagens bergmanianas ao longo de doze capítulos; ela fala para o espectador propondo um jogo distanciado e reflexivo de que não está isento um certo corte de sangue no fim da narrativa. Mas Sarabanda não vai tratar das possíveis relações entre Johann e Marianne ao se reverem trinta anos após o divórcio; há pinceladas do que sobrou do relacionamento, como a noite em que os dois velhos tiram suas camisolas, deitam juntos e dormem certamente sem sexo porém com a emoção dos tempos de paz do corpo. Mesmo assim, não é por aí que Sarabanda perfura seus assuntos: Marianne, que seria uma espécie de narradora no intróito e no cabo, é igualmente uma testemunha das atormentadas situações familiares de Johann em sua velhice de oitenta e seis anos; o filme vai transitar não por Johann e Marianne, embora os atores Erland Josephson e Liv Ullmann sejam os pontos luminosos do holofote afetivo-cinematográfico de Bergman, mas pelo filho de Johann, Henrik, viúvo ressentido da recente morte da esposa, vivendo uma relação de ódio com seu frio pai; vai transitar também pela amorosa atmosfera entre o avô Johann e a neta Karin, filha de Henrik; vai observar com obscura paixão as situações à beira do incesto entre Karin e Henrik.
Quando escreveu o roteiro de Face a face (1976), um dos filmes da fase de ambigüidade artística de sua filmografia, Bergman falava de uma dor de dente que o fazia “escrever” os filmes que filmava. Era uma dor de dente espiritual: o incômodo estético que lhe permitia visitar o inferno e sair santificado pela arte em obras-primas como Persona (1966) e Gritos e sussurros (1973). Agora, em Sarabanda, esta dor de dente se converteu num cancro terrível e assustador, é algo sem volta, sem o abano com o sinal luminoso da última imagem de Gritos e sussurros; a incompreensão entre um pai e seu filho em Através de um espelho (1961) e as dilaceradas conversações entre uma mãe e sua filha em Sonata de outono (1978) topam em Sarabanda uma radicalização do ódio, simbolizado especialmente nesta cena: Johann está tranqüilo em sua biblioteca, a câmara observa o livro que está lendo, o sofisticado filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard, o filho Henrik entra, perturba este isolamento com um pedido de ajuda, Johann numa frieza nórdica impressionante define sua repulsa àquele ser envelhecido que está diante dele e que é fruto de seu espermatozóide. Poucas vezes um cineasta ousou ser tão cruel numa imagem cinematográfica. Pode-se dizer que Bergman está bem velho, que esta é uma amargura da velhice; mas a transcendência cinematográfica desta amargura tem uma potência que não nasce de um artista velho, mas eternamente jovem. Bergman utiliza as composições musicais de Bach, principalmente a sarabanda e certas divagações religiosas das notas do grande compositor (veja-se a seqüência belíssima dentro duma igreja que culmina com um feixe de luzes sobre o quadro tendo no centro a figura de Liv Ullmann seguido de uma aproximação da câmara a um vitral de santos), tudo de maneira magnificamente plástica; conduzida por hábeis planos fixos mais ou menos longos e lentos, iluminada pelos diálogos, pelos desempenhos, pela partitura, pelas luzes, a narrativa atinge uma profundidade tocante e irreprochável. Ver Sarabanda é uma ato religioso: sentimo-nos ajoelhados como numa autêntica missa cinematográfica; de joelhos, percebemos que tanta beleza nos sufoca de êxtase.
Quando Bergman, na década de 80, anunciou sua aposentadoria em cinema, dizia-se que Fanny e Alexandre era a suma de sua obra. Não poderia ser: um filme tão álacre e aberto poderia dar conta de todos os significados bergmanianos? Sarabanda está mais perto desta categoria de suma: nunca o inferno cinematográfico de Bergman foi tão rígido e inflexível. Cinqüenta anos depois de O sétimo selo (1956), Bergman desiste de jogar xadrez com a morte: o jogo se dá entre os homens; dedicado à esposa falecida do cineasta, Sarabanda namora a morte, pois trata de velhos (os velhos Johann e Marianne, o velho filho Henrik viúvo, a fotografia da falecida Anna, mulher de Henrik, assim como sua carta final e as evocações que os vivos fazem desta morta), mas em momento algum a morte é enfrentada: são os homens que se enfrentam interminavelmente neste novo jogo de xadrez que é Sarabanda.
Por
Eron Fagundes