DIZEM QUE ALLEN
 

 

26 de março de 2007

Dizem que o cineasta norte-americano Woody Allen atravessa uma fase de decadência da qual talvez não se erguerá mais; dizem que os melhores filmes do diretor estão cada vez mais longe no tempo e que seus temas reiterativos se aproximam muito da banalização e do tédio formal; um crítico usou o adjetivo flácido para o atual estágio narrativo dos filmes de Allen. Nos anos 70 se dizia que Allen copiava os mestres europeus do cinema da alma e suas tiradas intelectuais rendiam obras dispersivas e mal costuradas. Não é novidade que Allen sempre foi criticado e, com seu humor judeu, soube rir de si mesmo e das questões que seu cinema provoca, como se vê de Memórias (1980) a Dirigindo no escuro (2002).

Em Scoop, o grande furo (Scoop; 2006) Allen está distante da flacidez de narrar acusada pelo crítico aludido acima: a precisão matemática q ue nasce no roteiro e se materializa em imagens finamente elaboradas; ao contrário do que dizem, cada gesto cinematográfico em Scoop funciona com a transparência dum ponteiro de relógio, revelando a plena maturidade estilística do realizador. Como em seu filme anterior, Ponto final (2005), que dividiu a crítica internacional quanto à avaliação dos resultados finais alcançados, em Scoop Allen volta a namorar o gênero policial, mas se trata de um policial às avessas, um corte policial cerebral, diverso daquela ação mais banal proposta por Hollywood: é um policial metafísico, como aquele de Crimes d’alma (1950), o primeiro filme dirigido pelo italiano Michelangelo Antonioni, um dos gênios que assombram a estética fílmica de Allen.

Scoop navega por diversas referências sutilmente harmonizadas no corpo narrativo. No início ouvimos o discurso diante do cadáver dum jornalista famoso. Na segunda seqüência, o navio da morte, um pouco surrealista, um pouco expressionista, evoca tanto o sombrio do sueco Ingmar Bergman quanto o mágico do italiano Federico Fellini, outras duas marcantes influências sobre Allen. Nesta seqüência o jornalista está a caminho do outro mundo. Na penúltima seqüência o mágico que serviu de instrumento para o último furo do jornalista (a revelação de um assassino em série cujos dados ele passa pós-morte a uma jovem repórter durante um show do mágico que a utilizava numa brincadeira de seu número) está neste navio da morte, pois nas idas e vindas atrás do grande furo juntamente com a repórter, bateu o carro e morreu. Se a cena inicial se abre com a oratória fúnebre em torno do cadáver do jornalista famoso, a cena final mostra o agradecimento que a jovem repórter faz diante das câmaras à ajuda prestada pelo falecido mágico no caso do assassino em série. Allen une com rara precisão as diversas pontas de seu hábil roteiro; flacidez, onde, caro senhor?

Demais, Allen está cada vez melhor como ator; quem se lembra de seus trejeitos quase insuportáveis dos tempos de Manhattan (1979), todavia um de seus filmes mais importantes? Assim, sua direção de atores está ficando também refinadíssima. Novamente ele dá destaque ao jeito interpretativo de Scarlett Johanson, que o tem apaixonado como diretor; cuido que o casamento estético dos dois vai bem. Como em Igual a tudo na vida (2003), Allen interpreta uma personagem que, não sendo o protagonista, funciona como um elemento de ligação e pensamento entre as peças principais da trama. E o faz com um distanciamento e um gabarito extremamente digno.

Por Eron Fagundes

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