15 de março de 2008
A desesperada violência que caracterizou as formas cinematográficas de 2007 no cinema americano tem em Senhores do crime (Eastern promises; 2007), o novo filme do canadense David Cronenberg, um ponto de estranha e inaudita excitação. Não chega a ter a depuração extremada atingida pelo realizador em Crash, estranhos prazeres (1996). Mas vai mais longe e inquieta mais que em Marcas da violência (2005), filme anterior de Cronenberg de que este Senhores do crime é uma espécie de irmão mais ousado.
A cena crucial da violência humana e artística a que chegou Cronenberg neste filme é a que se dá numa sauna, quando o protagonista —nu, recebendo ferimentos em seu corpo exposto— enfrenta criminosos da máfia russa e os liquida; aquele momento em que a personagem crava uma faca no olho de seu adversário é desnorteante, perturbador. Cronenberg filma a violência com engenho e pessoalidade. Como sempre em Cronenberg, há uma atmosfera esquisita de violência na narrativa para além dos enfrentamentos físicos. Apesar de tratar de gângsters e seres perigosos e ambíguos, Senhores do crime não tem aquela feição linear de filme de gângster como Os donos da noite (2007), de James Gray, e O gângster (2007), de Ridley Scott; Senhores do crime é muito mais intensamente tortuoso que os aspectos de bem-feito americano que os filmes de Gray e Scott exibem na tela. É mais secreto. E mais transgressor. A máfia russa de Cronenberg em nada se parece com a máfia russa de Os donos da noite; os gângsters de Cronenberg são nada perceptíveis à linearidade e estão mais próximos dos loucos russos pintados pela literatura de Fiódor M. Dostoievski. É uma violência que vem de regiões mais profundas que aquelas superfícies do habitual cinema americano.
Para a boa caracterização de seus seres, Cronenberg tirou tudo o que pôde de seu astro Viggo Mortensen. E Naomi Watts expõe com justeza a fragilidade-tenacidade de sua criatura. Mas o que me parece mais casar com as perturbações estranhas da narrativa de Cronenberg é a presença cênica do ator alemão Armin Mueller-Stahl, apreciado no passado em obras clássicas do cinema germânico, como Lola (1981), de Rainer Werner Fassbinder, e O ataque do presente contra o restante do tempo (1985), de Alexander Kluge; em Senhores do crime o ator faz um frio e amoral chefe mafioso russo que estuprou uma garota de quatorze anos e a engravidou; é o diário desesperado desta garota, recolhido pela enfermeira que a atendeu nos momentos finais (Naomi interpreta a enfermeira), quem vai costurar estoicamente o perambular de maldades que Senhores do crime apresenta.
Juntamente com Onde os fracos não têm vez (2007), de Joel e Ethan Coen, e Sangue negro (2007), de Paul Thomas Anderson, Senhores do crime é um dos trabalhos que melhor caracteriza a forma como a violência serviu à estética do cinema na safra mais recente de filmes americanos.
Por
Eron Fagundes