04 de abril de 2008
O cineasta Andrea Tonacci, italiano que vive desde a infância em São Paulo, estava praticamente esquecido pela história oficial do cinema brasileiro, embora tenha realizado Bang bang (1970), mais citado do que visto mas certamente um dos filmes que melhor articulavam a desarticulada linguagem cinematográfica do cinema udigrudi nacional que vicejava nos anos 60 e 70, à sombra tanto do cinema estrangeiro majoritário quando da empostação cultural-estética do Cinema Novo. Era o cinema sujo e de maus modos por excelência.
Quando Serras da desordem (2006), o segundo filme do diretor, aportou em Gramado há dois anos, lembraram-se de Tonacci. Quem já não lembrava que um dia se realizara Bang bang, passou a cavoucar na memória e a buscar apontamentos antigos. Para entender esta reaparição fantasmática de Tonacci, é bom ver o que era Bang bang, como era feito este filme, sua posição dentro do momento histórico do cinema brasileiro. Bang bang pertenceu a uma fase de nosso cinema em que alguns jovens realizadores descriam da possibilidade de se dizer alguma coisa em cinema. Acabaram apelando para o formalismo puro e perverso. O cinema não significaria nada senão imagens vazias de significado. O título, “bang bang”, remete à nossa colonização do olhar: somos fascinados por aquilo que os gringos fazem, o bang bang inventado pelos americanos, por exemplo. Em Bang bang, numa determinada cena, a personagem de Paulo César Pereio dialoga sobre trivialidades com uma mulher num bar; e o automatismo duma linguagem formada de “oi”, “bom dia”, “boa tarde” se expande para um debruçar-se exasperado sobre os clichês do cotidiano. Repetir interminavelmente “oi” numa mesa de bar ou alongar desarticuladamente a duração do plano é interferir no signo lingüístico e esvaziar a forma de qualquer coisa que não seja forma. Bang bang é praticamente só linguagem. Tem algo que beira o documental mas é muito mais experimental.
Que aconteceu com Tonacci nestes quase trinta anos que chegam até Serras da desordem? Ele permanece radical e sem concessões: sua obsessão por planos lentos e pelos gestos comuns exasperantes está intacta. Mas os anos mudaram. O sistema político que nos anos 60 e 70 empurrava as cabeças diferentes para a margem já não existe. Não caberia mais enterrar a cabeça na areia, como fazia uma personagem de Piranhas no asfalto (1970), de Neville d’Almeida, outro rebento marginal de então. Serras da desordem é experiência e linguagem, mas volta-se agora para o compromisso crítico. Tonacci, um dos que loucamente enterravam a cabeça na areia nos anos 70, põe a cara para fora e compromete-se com o outro, seu irmão índio, uma outra humanidade como assopra alguém a certa altura mas ainda uma humanidade.
O genocídio dos índios guajás, em Serras da desordem, introjeta-se na própria estética da realização. Imitando um documentário, Serras da desordem é uma narrativa nova, uma dramaturgia nova, mas uma ficção multifacetada; a base de costura do filme é a reencenação (pelas próprias pessoas que vivenciaram os acontecimentos originais) da história do índio Carapiru, cuja tribo foi vítima do genocídio imposto pelos brancos; a trajetória de Carapiru da mata à civilização e depois a volta à mata é reconstituída, isto é, é ficção. Mas as cenas de reportagem televisivas e entrevistas que interrompem os processos narrativos se assemelham mais a um documentário. A fusão exacerba as relações. Tonacci insta na alternância entre cores e cenas em preto-e-branco. Usa de recursos quase desusados hoje em dia, como fusões de imagens e escurecimentos, logrando aspectos líricos inusitados. O desarrumado interno e livre das cenas (ações espontâneas das pessoas, o tagarelar índio na primeira e na última parte do filme provocando um distanciamento porque não entendemos o tupi e menos ainda o tupi arcaico) não leva nunca ao desleixo formal; a construção dos planos é rigorosa, uma idéia geral de roteiro articula as desarticulações e as relações naturais da imagem fundem-se numa plasticidade inesperada e diversa daquela a que o cinema nos habituou.
Para enfeixar, duas considerações. O genocídio dos silvícolas talvez encontre neste filme de Tonacci seu ponto mais crucial. Mas há outros filmes brasileiros que lamentaram este trágico problema. Raoni (1976), de Pierre Dutilleux e Luis Carlos Saldanha; Yndio do Brasil (1995), de Sylvio Back; Mato eles? (1982), de Sérgio Bianchi; e esta ficção documental que é Iracema, uma transa amazônica (1974), de Jorge Bodansky e Orlando Senna.
A outra consideração é sobre a primeira sessão pública do filme em Porto Alegre, na Sala Santander. Com a presença do próprio diretor, a comunidade cinematográfica porto-alegrense parecia estar de braços dados com aquele sentimento de cinefilia que nos anos 60 a 80 nortearam a vida da cidade; entre os cinéfilos que pude ver de relance estavam o diretor de cinema Carlos Gerbase, a atriz e cineasta Martha Biavaschi, os críticos Cristian Verardi, Ivonete Pinto e Fatimarlei Lunardelli, o cineclubista André Kleinert. Para mim foi um retorno da visão dos velhos tempos de cinefilia.
Por
Eron Fagundes