O FINLANDÊS ÁRIDO E O CHINÊS HOLLYWOODIANO
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8 de maio de 2003

A trajetória cinematográfica do diretor finlandês Aki Kaurismaki é praticamente ignorada do público brasileiro: como tem acontecido com muitos cineastas importantes de cinematografias periféricas. Foi exibida, faz anos, uma versão para a contemporaneidade de Crime e castigo (filme de 1983) de F. M. Dostoievski; seu Leningrado Cowboys vão à América (1989) chegou a ser cultuado. Desta pequena amostra o espectador pôde desfrutar do rigor formal dum realizador que se entregava a uma análise descarnada mas vigorosa da conduta do homem de hoje.

Agora é a vez de chegar por aqui O homem sem passado (Mies vailla menneiyyttä; 2002), agraciado com o Prêmio do Júri do Festival de Cinema de Cannes do ano passado. A premiação permitiu que o filme furasse o bloqueio comercial a obras fora das facilidades a que o cinema americano de sempre nos habituou. Kaurismaki permanece o mesmo inquietante estilista de outros tempos: a precisa utilização dos cenários (talvez só o italiano Michelangelo Antonioni tenha sido tão feliz em valer-se dum cenário narrativo), a disposição plástica de objetos e atores dentro do plano (outra herança de Antonioni), certa estudada lentidão de planos-seqüência fixos e os gestos despojados do elenco são marcas inegavelmente alvissareiras de um autor de cinema. Num determinado plano-seqüência fixo três personagens comem, alimentam-se, a câmara deleita-se na trivialidade: trata-se também dum plano médio em que o senso de espaço provoca uma certa plasticidade. Noutro plano-seqüência fixo o homem experimenta uma roupa nova diante duma mulher, a precisa colocação do espaço cinematográfico torna a inquietar. São belezas fugazes todavia, Kaurismaki está longe do brilho de seus filmes anteriormente vistos por aqui. De que fala O homem sem passado? Da despersonalização do indivíduo contemporâneo: o protagonista perde a memória depois de ser espancado durante um assalto e deve recompor uma nova vida, longe dos condicionamentos sociais. Neste aspecto, o diretor finlandês permanece pessoal em seu estilo: não vende sua alma ao comércio das imagens, ainda que a aridez de O homem sem passado possa estorvar o contato emocional.

Diferentemente se passa com o sino-americano Wayne Wang, autor de filmes importantes como Cortina de fumaça (1994), Sem fôlego (1995) e O último entardecer (1997). Ao que parece, Wang, na fase atual de sua carreira, está mais interessado em paparicar o público de Hollywood. Isto se evidenciava em Em qualquer outro lugar (1999), melodrama sobre as relações entre mãe e filha. A despersonalização de Wang se acentua em Encontro de amor (Maid in Manhattan; 2002), veículo para o estrelismo desmesurado da atriz Jennifer Lopez. Wang torna-se nesta fita um artesão qualquer, um articulador de imagens impessoais, um montador de planos cinematográficos extremamente convencionais e sem qualquer função estética. Wang, o diretor, submerge para dar lugar ao filme de Jennifer Lopez, a estrela. Em seu ensaio As estrelas (1972) o pensador francês Edgar Morin observa o fenômeno: “Assim se diz freqüentemente o filme de Garbo, o filme de Bardot, o filme de Belmondo.” O problema é que Jennifer na pele duma camareira se afigura bastante falsa porque lhe falta o carisma dos astros de antanho; é algo tão artificial quanto a interpretação de Julia Roberts para uma dona-de-casa em Erin Brockovich (2000), de Steven Soderbergh, outro realizador que tem alternado fitas empenhadas com produções rasteiras, as chamadas caça-níqueis. Para comparar, basta evocar a sensibilidade de intérprete de Sofia Loren, igualmente uma estrela, ao viver uma dona-de-casa em Um dia muito especial (1977), a obra-prima do italiano Ettore Scola.

Se Kaurismaki opta por uma extremada aridez que não reedita Antonioni em seu esplendor estético e Wang vai em busca do canto fácil da estrela de seu filme, filmando sem sua própria personalidade, suspeita-se que o bom cinema da atualidade não está nem num nem noutro caso. Embora o caminho adotado por Kaurismaki seja cinematograficamente mais digno.

Por Eron Fagundes