28 de abril de 2008
A Nova York que John Cameron Mitchell pinta em Shortbus (Shortbus; 2006) é uma alegoria de si mesma, nestas imagens especiais do filme a realidade é seu próprio simbolismo. Como estamos longe da Nova York dos esnobes intelectuais de Woody Allen em Manhattan (1979), em que citavam com distanciamento a fauna do italiano Federico Fellini em alguns diálogos posudos; a fauna que Fellini poderia ter criado em Satyricon (1969) é na verdade trazida ao cinema por Mitchell em Shortbus, este sim um verdadeiro herdeiro moderno de Petrônio! E como estamos igualmente longe da Nova York noturna e neurótica de Martin Scorsese em Motorista de táxi (1976)! A Nova York que vemos em Shortbus vem para além da pós-modernidade e é posterior à fantasia árabe de 11 de setembro de 2001 quando se romperam certos limites entre o espetáculo e a realidade, coisa que o pensador francês Jean Baudrillard vinha acusando desde a guerra do Golfo. O sexo, para Mitchell e suas personagens, não existe se não for encenado; afinal não seria o sexo sempre uma encenação?
Em declarações, o diretor Mitchell, buscando afastar seu filme dos conceitos grosseiros do filme pornográfico, diz que o que menos lembramos depois do filme é o sexo. Não é verdade, a afirmação de Mitchell é maliciosa e mistificadora: se o filme o tempo inteiro versa sobre sexo, não temos como esquecer o sexo que se introduz nele. Diz também o cineasta que o filme não pretende chocar ninguém. Problemático: sua radicalidade sexual chocará algumas almas, certamente. O que se pode dizer, em defesa da excelência criativa deste filme, é que vamos lembrar o sexo ali retratado, mas de uma maneira diversa daquelas dos filmes pornográficos: a excitação é muito mais estética do que sexual. O que se pode também dizer para aqueles que não resistem à intensa criatividade sexual da realização, sendo agredidos em seus pudores morais e até políticos, é que é azar deles: deixarão de desfrutar de um dos mais inovadores filmes da atualidade, tão provocativo quanto complexo em suas estruturas e intenções.
Shortbus é o “império dos sentidos” da pós-pós-modernidade. É um filme de imaginação. Mas foi construído com as improvisações de um documentário. Mas quem vai enxergar o documentário neste delírio todo? Mitchell queria fazer o retrato da pan-sexualidade contemporânea. Anunciou na internet pedindo vídeos de criaturas que tinham experiências sexuais interessantes para expor. Foi com este material recebido que Mitchell montou as doidas histórias que saltitam em Shortbus. Inicialmente, as seqüências pipocam na tela como se fossem excertos soltos; o espectador tarda em captar o deslizante ritmo narrativo do filme, que às vezes parece demasiado desconjuntado, arbitrário. Mas a força da imagem de Mitchell é perturbadora e acaba por arrebatar o observador.
No início do filme, um homem põe-se a filmar seu próprio ato de urinar numa banheira. Pouco adiante há uma cena de contorcionismo sexual em que um homem pratica felação em si mesmo e despeja seu próprio sêmen sobre sua boca. O sexo é franco o tempo todo; encena-se um sexo que de fato acontece. Casais heterossexuais, casais homossexuais, orgias bárbaras se vão acumulando sem dar tréguas ao espectador. Enfados e desesperos se entranham nas estranhas personagens duma Nova York autenticamente de imaginação. A terapeuta de casais vivida pela oriental Sook-Yin Lee é uma curiosidade que costura algumas cenas. Há um músico barbudo, com ar de tédio, cuja semelhança física com o cineasta gaúcho Henrique de Freitas Lima me impressionou. O observador é jogado sem dó nem piedade para dentro deste caldeirão de desejos.
Shortbus é tanto o micro-ônibus escolar quanto o inferninho onde se concentram as personagens do filme. Numa determinada cena, uma suruba entre três garotos, um passa a língua na genitália do outro, um terceiro lambendo sarcasticamente a bunda de outro, os rapazes entoam o hino nacional americano. Diz Mitchell: “Eu sou patriótico, de maneira diferente de Bush, mas sou.” Perversidade humorística.
Por
Eron Fagundes