UMA EXCENTRICIDADE EM HOLLYWOOD

26 de Maio de 2003

Às vezes Hollywood faz sua autocrítica. É o caso de Simone (Simone; 2001), dirigido por Andrew Niccol, que antes assinara o roteiro de um dos mais ácidos filmes americanos de tempos recentes, O show de Truman (1998), cuja direção se deveu ao australiano Peter Weir. Claro: Niccol não é tão bom diretor quanto Weir; a ingenuidade, o pitoresco e o superficial não são devidamente equacionados por sua encenação. Mesmo assim, a excentricidade exposta na tela é algo estimulante de se ver ali, no coração da meca do cinema.

A capacidade de manipulação que têm a arte e os meios de comunicação em geral sempre mereceu referências dos estudiosos. Orson Welles, antes de revolucionar o cinema com Cidadão Kane (1941), assustou o incauto povo americano com um programa radiofônico chamado “A guerra dos mundos” em que descreveu como verdadeiro um falso ataque extraterrestre aos Estados Unidos. Niccol está muito longe de um gênio como Welles, mas seu filme vale-se das conquistas da era digital para reflexionar sobre uma nova era das estrelas. Como toda realização que quer fazer o inventário das misérias de Hollywood (embora nunca deixe de ser hollywoodiano em suas linhas gerais), Simone põe em cena um diretor de cinema, misturando seus problemas humanos com seus problemas artísticos; Oito e meio (1963), do italiano Federico Fellini, foi a pedra de toque deste tipo de cinema confessional e inevitavelmente melancólico; Simone não chega a tanto, não consegue manter um desejado distanciamento relativamente a Hollywood para exercer sua crítica, mas nos permite algumas reflexões sobre certas relações entre a tecnologia da era digital e a criação de imaginários coletivos. Num opúsculo há pouco editado pela Sulina, As tecnologias do imaginário (2003), o pensador e ficcionista gaúcho Juremir Machado da Silva tratava destas questões: “Todo imaginário é real. Todo real é imaginário. O homem só existe na realidade imaginal... o ser humano é movido pelos imaginários que engendra.” Em Simone, ao iludir milhões de pessoas criando uma atriz a partir dum programa de computador e fazendo-a passar por pessoa de verdade, o cineasta vivido por Al Pacino radicaliza a constatação de que a realidade é ilusória. A própria atriz criada diz a certa altura: “Eu sou a morte do real.” Haverá coisa mais pós-moderna, para usar dum vocábulo caro a Juremir? Ao mesmo tempo, o diretor de cinema revela: “Eu sou Simone.” Esta revelação de que o criador é sua própria criatura, ou vice-versa, é a radicalização da frase do romancista francês Gustave Flaubert: “Madame Bovary sou eu.” Flaubert, bom realista, escancarava o jogo do faz de conta, das invenções literárias. O cineasta-personagem de Simone, aproveitando-se da era diigital, mistifica a afirmação flaubertiana, pois ele é, de fato, sua própria atriz: a informática materializa a invenção artística, aquilo que deveria estar só na cabeça do artista adquire corpo e movimento.

Às vezes Hollywood se despe em excentricidades que, se não aprofundam seus problemas, ao menos abrem brechas para pensamentos diferenciados.


Cinemania por Eron Fagundes