JORNALISMO E CINEMA: IRMÃOS
 

 

23 de agosto de 2006

Diretora do extraordinário O sonho de Rose (1996), que retratava com humanismo e densidade cinematográfica as misérias humanas dum grupo de trabalhadores da terra sem-terra no Rio Grande do Sul, a cineasta Tetê Moraes volta a mostrar sua perícia como documentarista em O sol, caminhando contra o vento (2005). Dividindo a direção do filme com Martha Alencar, Tetê, falando aparentemente de sua experiência e de seus amigos como jornalistas do jornal alternativo “O sol”, de breve existência no período agudo da ditadura militar, expande, de maneira sensível e quase imperceptivelmente, o conteúdo das imagens de sua realização para um autêntico panorama de toda uma época da vida brasileira e também mundial; expondo-se como hino à excelência da geração que foi jovem na década de 60, O sol, correndo o risco da parecer reacionário aos olhos das gerações posteriores, edifica esta idéia de que foi mesmo naquele decênio que surgiram as cabeças mais revolucionárias do século XX; é uma idéia que sempre se poderá discutir fora do filme, mas dentro dele o espectador é convidado a partilhar das paixões únicas daquela geração; numa entrevista dentro do documentário, Chico Buarque de Holanda ameniza a responsabilidade das gerações atuais, aduzindo que a paralisia de hoje é determinada por sofisticados mecanismos de controle de que o indivíduo não tem controle; Carlos Heitor Cony, entrevistado mais cerimoniosamente como num gabinete de estudos, quer ver o sonho como inerente ao ser humano em qualquer geração: mas todo o desenvolvimento de um filme como O sol mostra que o sonho, tal como havia nos anos 60, já não existe, ou foi substituído por outros sonhos ou ilusões.

O sol foi rodado basicamente durante uma festa comemorativa do jornal a que se refere, reunindo criaturas que de maneira variada participaram daquele ato jornalístico de rebeldia. Festa e esquerda gerou em determinada época a expressão esquerda festiva, como evoca com escondida ironia Chico Buarque. Era a esquerda dos artistas, de gente que cantava e poetava, contrapondo-se à esquerda ferreamente ideológica que se comportava como se o mundo fosse uma sala de aula marxista; mas O sol, mesmo tratando duma festa, não é um filme irresponsavelmente festivo, é alegre, canta a eternidade da juventude (talvez a única coisa eterna mesmo seja a juventude), mas se propõe como um autêntico tratado cinematográfico de um tempo histórico, de maneira muito mais consciente e profunda que Zuzu Angel (2006), a ficção de Sérgio Rezende bonita mas gordurosa.

Centrando sua atualidade na festa que reuniu componentes do jornal “O sol”, o documentário de Tetê e Martha utiliza muitas imagens de arquivo que tornam o filme ainda mais apaixonante e às vezes dilacerante em suas indagações e perplexidades. Certos planos clássicos do cinema dos anos 60, como a lenta e agoniada descida escadaria abaixo do ator Oduvaldo Viana na pele de Marcelo no sombrio final de O desafio (1965), de Paulo César Saraceni; como uma cena de Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, que aparece só como imponência musical barroca. Ou então Caetano Veloso ou Nara Leão cantando no auge de sua arte, um despojamento de gestos que parece provocativamente pré-histórico diante da parafernália dos pops de hoje, Caetano e Nara utilizavam muito mais a voz e o rosto que possíveis exageros corporais para interessar o público. Ou algumas cenas de rua tão terrível e nostalgicamente datadas: belas mulheres nas areias cariocas. Costurando com mestria sua realização, Tetê e Martha, ex-jornalistas, buscam uma associação sempre latente e sempre negada entre o jornalismo e o cinema; atrás das câmaras, estas duas mulheres lembram que uma das funções do jornal é pensar sobre filmes à luz da realidade (a atividade crítica) e uma das funções do cinema é encaminhar-se para o jornalismo (a relação vital possível num documentário). Juntamente com O fim e o princípio (2005), de Eduardo Coutinho, e Crime delicado (2005), de Beto Brant, O sol está entre os destaques do ano como representante brasileiro.

Por Eron Fagundes

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