UFANISMO LIBERTÁRIO DE FORMAN
 

 

15 de fevereiro de 2008

O grande rigor clássico do realizador tcheco Milos Forman em Sombras de Goya (Goya’s Ghost; 2007) não é um impedimento para que a alta voltagem dramática se solte inteiramente ao longo do filme; desde os tempos de Um  estranho no ninho (1975), sabe-se que Forman se especializou em equilibrar sua geometria estilística e uma espécie de teorema ideológico com um desenvolvimento emocional pedido por um público à americana. Forman se adaptou sem se abastardar. E Sombras de Goya é um dos picos de sua arte. Poucas coisas no cinema poderão ser mais gratificantes nesta temporada que recém se inicia do que este poderoso e atualíssimo drama histórico encenado por Forman.

Não se trata duma cinebiografia do pinto espanhol Francisco Goya (1746-1828), cuja arte sombria foi capturada pelo diretor espanhol Carlos Saura em seu austero Goya (1999), onde Francisco Rabal interpretava o artista. O que interessa a Forman em Sombras de Goya, diversamente do que ocorria a Saura, é desvendar os mecanismos obscuros da sociedade que cercava o artista Goya e a maneira como este artista, em suas limitações humanas, lidava (e se incrustava) com estes mecanismos. Goya é a personagem histórica mais importante do filme de Forman, mas não o é para sua narrativa. O eixo de interesse do filme se desloca da figura de Goya (vivido com discrição por Stellan Skarsgard, numa interpretação oposta àquela de Kirk Douglas como Vincent Van Goh em Sede de viver, 1956, de Vincente Minnelli) para a criatura do padre Lorenzo (personagem executada com rasgos barrocos e refinamento de cena-imagem por Javier Bardem); já a partir da escolha do intérprete, Forman determinou a alteração de perspectiva do que interessa em seu filme.

Sombras de Goya não é um retrato da arte de Goya, embora, durante os créditos finais, Forman nos arrebate com a profusão e a diversidade de telas do pintor. Sombras de Goya é na verdade um retrato do obscurantismo duma época, os tempos da Inquisição, o catolicismo autoritário que jogava na masmorra uma jovem acusada de costumes judaicos por uma ascendência tão antiga e de que ela nunca ouvira falar. Sombras de Goya utiliza a influência do sombrio das telas de Goya para ver o horror de um tempo que de quando em quando se perpetua  na história da humanidade. A figura de Lorenzo, na pele impagável de Bardem, é um elemento característico, assim: suas vacilações e suas fraquezas é que permitiram o crescimento do obscurantismo, seja quem for que esteja no poder, a Igreja Católica ou Napoleão. Herdeiro do ufanismo libertário dos anos 70, onde o cinema maior de Forman de fato se formou, o cineasta transforma Sombras de Goya num libelo notável contra todas as sombras que querem impor ao homem livre.

Auxiliado pelo experiente Jean-Claude Carrière, Forman edifica um roteiro cronometrado: cada pedra é indeslocável de seu lugar. Se Bardem impressiona mesmo como o cínico e fraco Lorenzo, Natalie Portman (cuja nudez açulou imaginações no pórtico de Viagem a Darjeeling, 2007, do norte-americano Wes Anderson) é deslumbrante em suas mutações em Sombras de Goya e chega em certo momento a tremer nua nos braços trêmulos de Bardem.

Por Eron Fagundes

| topo da página |