ENCONTRO COM OS ANOS 60
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14 de fevereiro de 2005

Apesar de um certo rigor formal e uma constante provocação temática, o novo filme do italiano Bernardo Bertolucci, Os sonhadores (The dreamers; 2003), não oculta o anacronismo de filmar que vai sendo sedimentado em cada movimento de câmara, em cada curva do cenário, em cada gesto dos atores. Sabe-se que o realizador é um dos grandes nomes da história do cinema e seu O último tango em Paris (1972) abriu para os olhos do observador um mundo de sombras e movimentos cuja profundidade estética ainda está para ser perfeitamente degustada. Mas talvez uma obra como Os sonhadores demonstre o inevitável envelhecimento de certos métodos de filmar característicos dos anos de contestação social, as décadas de 60 e, um pouco,a de 70 do século passado.

Sim: é sempre bom reencontrar Bertolucci e os inquietos anos 60, rever as loucuras de maio de 1968 em Paris e tentar sentir sua ingenuidade e suas formas diabólicas de ser (ou haveria também alguma coisa de angelical em toda essa utopia?). O roteiro do filme acompanha o triângulo amoroso que envolve um jovem estudante apaixonado por cinema (haveria algo de autobiográfico nas muitas citações cinematográficas da narrativa?) e dois irmãos gêmeos (um homem e uma mulher) cujo relacionamento incestuoso vai servir de iniciação às descobertas que o jovem estudante vai semear naquela primavera parisiense que marcou o século XX.

É bom observar que uma das influências básicas assimiladas por Bertolucci é o cineasta francês Robert Bresson, sem embargo da distância entre o ascetismo deste e a carnalidade gordurosa daquele. Uma das lições de Bresson incorporada por Bertolucci é a utilização de atores: interpretações quase vazias, rudes, despindo-se lentamente da emoção do desempenho; e os intérpretes que ele escolhe caem na medida nesta exigência. Reveladora desta afeição de Bertolucci por Bresson, é a citação que ele faz em seu filme à cena final de Mouchette, a virgem possuída (1967), de Bresson: a pequena protagonista de Bresson rola morro abaixo buscando afogar-se num rio, não chega a cair na água, volta para o cume, torna a despenhar-se e então seu corpo dá no rio, consumando-se o suicídio. A inclusão deste trecho do filme de Bresson na montagem do filme de Bertolucci, fazendo contraponto com a frustrada tentativa de asfixiar-se e a seus companheiros por escapamento de gás por uma mangueira perpetrada pela garota de Os sonhadores (uma inesperada Mouchette bertolucciana?), dá o padrão de comportamento das personagens dos anos 60: comportamento de cinéfilos, isto é, as imagens cinematográficas determinam tudo.

Por Eron Fagundes