09 de maio de 2008
O cinema do norte-americano Woody Allen vai bem. É o que se vê em O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream; 2007), dotado duma justeza narrativa que encanta pela naturalidade com que o cineasta insere o fato inesperado (o crime) no seio da banalidade do cotidiano das personagens (dois irmãos às voltas com seus probleminhas sentimentais e de sobrevivência). Se em seu filme anterior, Scoop, o grande furo (2006), Allen produzia um sombrio fantástico ali entre Federico Fellini e Ingmar Bergman dentro da objetividade psicológica duma trama à Eric Rohmer, em O sonho de Cassandra a atmosfera de estranheza se desenvolve lentamente sem deixar de acumular a banalidade como num filme de Rohmer.
O início do filme é uma autêntica crônica do nada que Allen executa com distanciamento e delicadeza. Os dois irmãos vivem suas futilidades e compram um barco, que batizam de “o sonho de Cassandra”. Senão quando, um fato dramático faz a narrativa pesar mais que o ar que vinha respirando: um tio dos rapazes propõe a eles matarem um homem que conhece os podres da empresa deste tio e pode pôr em perigo a estabilidade da vida do tio; hesitando moralmente, eles acabam por cometer o crime. O que se segue depois entre Terry e Ian, os irmãos, é o desenvolvimento da culpa, que se aguça mais em Terry e vai gerar o desfecho trágico final. A questão do crime e da culpa parece estar assombrando Allen na fase atual de sua filmografia: Ponto final (2005) mostrava as mesmas questões em outro enredo. A relatividade do crime, eis o que Allen, um tanto agnosticamente, parece propor. Mais do que do escritor russo Fiódor M. Dostoievski, esta idéia de como a culpa tenta racionalizar o crime vem de um clássico do cinema americano, Um lugar ao sol (1951), de George Stevens. Se em Ponto final a referência ao filme de Stevens era um tanto velada, em O sonho de Cassandra a alusão se abre; como em Stevens, em Allen a obsessão do crime final entre os irmãos, o desejo de matar que vai e volta, os fatos que se precipitam copiando o que está na mente das personagens, tudo isto se dá a bordo dum barco, aqui “o sonho de Cassandra”, tão distante e tão perto da embarcação do frívolo rio dos anos 50 em Um lugar ao sol.
Diferentemente duma personagem que ele mesmo interpretou em Dirigindo no escuro (2002), Allen não está dirigindo no escuro: sabe o que está fazendo, sabe do que fala. A maturidade de sua linguagem do cotidiano é notável em O sonho de Cassandra. Preciso e despojado nos diálogos, conciso nos enquadramentos, delicado na utilização de certos movimentos de câmara, exigente no recurso dos atores, Allen faz bem ao gosto do espectador que possa ter alguma dificuldade em aceitar a natureza espetacular do cinema.
Por
Eron Fagundes