27 de
junho de 2005
A reposição
em cartaz de Terra em transe (1967), um dos filmes básicos
rodados no ferver do Cinema Novo pelo cineasta brasileiro Glauber
Rocha, vai permitir ao espectador de ontem e de hoje constatar
a eterna violência estética desta realização
que, utilizando elementos e observações de sua época
(a década de 60 do século XX), compôs um
retrato do próprio futuro do Brasil, que são os
dias de agora (os primeiros passos do novo milênio). Há uma
cena em que Sara, a mulher que carrega a consciência narrativa,
diz a Paulo Martins, jornalista e poeta que concentra as contradições
de nosso intelectual, que “a política e a poesia
são demais para um só homem”. Glauber é Paulo
Martins ao transformar Terra em transe em poesia e política;
a loucura e a desordem do filme vêm desta fusão
terrível, frases marxistas e grandiloqüência
existencial se misturam em diálogos que são autênticos
recitativos barrocos (bem ao jeito baiano, revelador das origens
de Glauber); as imagens, atormentadas, igualmente misturam um
delírio extraído de Karl Marx com o samba orgíaco
nacional.
É
verdade que Terra em transe, com o fluir das décadas,
viu sua obscura linguagem adquirir uma certa rigidez clássica
que clareou certos episódios aos olhos do observador.
Mas não perdeu sua força interna revolucionária:
isto vem de que a luz e o plano cinematográfico de Glauber
eram propositadamente sujos, terceiromundistas, marginais. Ele é o
oposto do paulista Walter Hugo Khouri, que era um discípulo
do italiano Michelangelo Antonioni: um filme de Glauber é gritado,
não-somente nas interpretações com vozes
e gestos mas ainda na imagem, que despreza o rigor formal e busca
a flutuação estilística. Nossa reação
eterna diante do que é mostrado em Terra em transe é de
desamparo: não temos por onde agarrar-nos. Hoje talvez
entendamos melhor o que Glauber quis dizer com sua inventada
El Dorado e suas personagens delirantes. Mas isto não
ajuda muito: a insegurança trazida pelo contato com os
sons multifacetados da narrativa segue existindo; e perturba,
joga-nos no abismo. O
problema não é ordenar em nosso cérebro
as questões deste fictício país que nos
anos 60 foi tido por uma metáfora do Brasil: El Dorado
vive perturbações políticas em que um intelectual
perdido hesita entre o charme de Porfírio Diaz e a demagogia
politiqueira de Felipe Vieira enquanto um empresário nacional,
Julio Fuentes, articula negociatas com políticos e empresas
estrangeiras. Em Terra em transe tudo isto é um caos:
não há como ordenar, a câmara de Glauber
espia mais de uma coisa ao mesmo tempo, há discursos que
se superpõem e o dizer de Porfírio (que no poder
vira ditador), ao ser coroado no fim do filme, “aprenderão,
aprenderão. Dominarei esta terra, botarei estas histéricas
tradições em ordem”, é utópico,
nem um artista como Glauber nem os ditadores nacionais lograram
dar coerência e forma ao histerismo nacional. Desconsolado,
Glauber preferiu, em Terra em transe, o esforço de deixar
na tela a própria histeria.
Sabe-se
que Terra em transe continua a ser um filme do futuro. Um futuro
que agora chegou. Numa das muitas desarvoradas e multiformes
cenas que Glauber foi filmando como se estivesse tocado de um
vento inconstante, um indivíduo do povo, chamado Jerônimo,
começa a articular suas reivindicações referindo
seu desempenho como sindicalista para falar em nome povo, então
Paulo, o intelectual, sai do fundo do plano para junto de Jerônimo
tapando-lhe a boca com a mão, interrompendo suas frases.
Paulo dirige-se para a câmara (que é subjetivamente
o espectador) e questiona: “Você vê o que é o
povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado. Vocês
já pensaram Jerônimo no poder?” Quase quarenta
anos depois, o povo brasileiro tem a oportunidade de ver Jerônimo
no poder. Profético Glauber!
Por Eron Fagundes
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