A "CIVILIZADA" CLASSE MÉDIA
 

 

A evolução industrial do cinema gaúcho se insere dentro da abundância da produção cinematográfica brasileira atual com os filmes possíveis nos confins dos pampas. Tolerância (2000), de Carlos Gerbase, é uma das obras gaúchas mais "visíveis"; sua "visibilidade", que inclui tanto o olho do espectador habitual como o olho do espectador crítico, nasce basicamente da sempre louvada qualidade de Gerbase como "narrador cinematográfico".

Bem sucedido comercial e artisticamente, o novo Gerbase representa um porto seguro na evolução do estilo de filmar de seu diretor desde os tempos de Inverno (1983), longa-metragem realizado ainda na bitola Super-8 (que foi a oficina de aprendizagem de imagens de toda uma geração de realizadores sul-rio-grandenses). Gerbase demonstra especial sensibilidade em dirigir seus atores, conferindo harmonia interpretativa a um elenco diferenciado de intérpretes em que a beleza despojada de Maitê Proença se mede com a tensão interior de Roberto Bontempo e os dois madurões terçam armas com os descontraídos e sensuais jovens em cena; a particularidade da direção de elenco de Gerbase evoca, meio palidamente é verdade, o jeito do francês Eric Rohmer (pouco visto por aqui), copiado à exaustão pelo norte-americano Woody Allen (que tem seu público cativo e, para um cineasta descaradamente intelectual, até expressivo). Mas é nas citações cinematográficas que Gerbase, utilizando-as com senso de tempo em sua montagem e muita originalidade (não se trata duma citação-cópia), revela seu ego narrativo: o filme começa homenageando os conhecidos dramas de tribunais do cinema ianque, faz sua referência à abertura de pernas de Sharon Stone em Instinto selvagem (1992), de Paul Verhoeven, chega a aludir a um clássico filme político dos anos 70, Esta terra é minha terra (1976), do americano Hal Ashby (a cena é aquela em que aparece no jornal a fotografia de Maitê com o cliente, um indivíduo que cometeu um crime em luta por sua própria terra, o que conduziu a imprensa a inseri-lo equivocadamente na questão dos sem-terra, imagem encabeçada pelo dizer "Esta terra é minha terra"), desenvolve trechos policiais que às vezes beiram inevitavelmente o clichê visual, encena questões sexuais e românticas, envereda por uma narrativa de costumes da Porto Alegre dos anos 90, sem nunca perder sua unidade e pessoalidade.

A geração dos anos 70 chega aos anos 90 e deve enfrentar suas contradições. Os conflitos políticos da década de 70, o consumo de drogas, as lutas libertárias vieram a dar, como sempre, na constituição de uma família (conceito que pode ter sido sacudido dos anos 60 para cá, mas não foi, como aspiravam os mais apocalípticos, destruída), o crucial é que o comportamento de outrora dos pais revive hoje, diferenciado é certo, nos filhos e em algumas ousadias do destino que a hipocrisia teima em ocultar.

Gerbase é suficientemente irônico para destratar os bons modos civilizados da classe média. A advogada vivida por Maitê vai para a cama com seu cliente e de soco dá a notícia a seu marido, que se choca; ele deixa-se seduzir pela amiga adolescente da filha, e sua mulher, quando descobre o fato, se ira. Hábil ao manejar os signos cinematográficos, Gerbase, na parte final do filme, faz os planos de memória (a memória da personagem de Maitê, que recorda tudo sentada num bar e depois sai ao encontro de seu cliente) do assassinato da garota se cruzarem com os planos-presente do simulado latrocínio contra o homem para cujo encontro a criatura de Maitê se dirigia. A força destes sintagmas alternados é uma demonstração do nível de perícia técnica a que Gerbase (e seu montador Giba Assis Brasil) chegou ao longo dos anos.

Por Eron Fagundes

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