28 de outubro de 2007
José Padilha é um diretor de grande habilidade para encenar as ações cinematográficas nos moldes daquelas definidas pela linguagem do cinema comercial americano. Ele é um caso raro no cinema brasileiro: não tropeça nas frases fílmicas e está revestido de um brilho narrativo (narrativo do filme de ação) incomum. Mas não é um alienado, não é alguém interessado em entreter simplesmente o público. Padilha está interessado em compreender os mecanismos da sociedade. Como acontecia com o greco-francês Constantin Costa-Gavras em determinada época, Padilha se vale dos exercícios turbulentos do cinema comercial para expor uma realidade social e política. Padilha é um diretor de ação e um cineasta social: esta dupla face convive bem em seu cinema, cujo primeiro rebento foi Ônibus 174 (2002), onde o realizador transformava um documentário num filme de ação que nunca deixava de ser também um documentário.
O segundo filme de Padilha, Tropa de elite (2007), é um filme de ação que o cineasta transforma muitas vezes num documentário que nunca deixa de ser em sua essência um filme de ação. Mas não é um filme de ação vazio, pura linguagem. É uma ação voltada para a consciência criminosa da sociedade de hoje. A sociedade é formada também pelos espectadores que assistem a Tropa de elite. No fundo o espectador é o verdadeiro bandido que é alvo do narrador de Padilha; este narrador é uma virulenta opereta de linguagem que quer simbolizar a figura fascistóide e impositiva do protagonista, um policial, o capitão Nascimento. No final do filme o policial vingativo que aponta sua potente arma para estourar a cabeça do traficante Baiano está também apontada para a cabeça do espectador, entre a cabeça do espectador e a cabeça de baiano há uma associação que o filme-policial de Padilha pretende explodir.
Tropa de elite é um filme perverso e insolúvel. Mostra o nível a que chegou o fascismo de todos nós. Em Baixio das bestas (2007), do pernambucano Cláudio Assis, a animalidade está no sertão; em Tropa de elite os animais são nossos companheiros urbanos, e também nós, que nos afogamos no turbilhão de balas de Tropa de elite, um filme que perigosamente nos provoca a pegar em armas. Talvez não haja mesmo outra solução, talvez a violência do mundo seja irreversível; somos inevitavelmente fascistas e o cinema nos pegou no contrapé.
“A primeira vez que vi Eu matei Lúcio Flávio, só senti nojo e repulsa. A figura do policial feito santinho que salva criancinhas e chora no túmulo de toxicômanas; o atleta chamado para salvar uma sociedade apresentada como decadente, justificando qualquer forma de violência e arbítrio policial: difícil de engolir. Filmes de Jece Valadão, Carlos Imperial, Toni Vieira já deram imagens positivas da polícia, mas certamente nunca de modo tão descarado, tão programático como Eu matei Lúcio Flávio, um filme militantemente de extrema-direita.
Imagens insistentes, situações, o tom do filme não me saíam da cabeça. Amava o filme. Isso não podia nem queria negar. Impossível resolver a contradição na base de ‘o diretor tem talento, mas discordo de sua mensagem’. Porque é uma coisa só. Esse filme e suas imagens não existem sem o elogio à polícia. Como é uma coisa só a minha reação de nojo e fascínio.” (Jean-Claude Bernardet, in Piranhas no mar de rosas, livro de 1982).
Tropa de elite estaria ressuscitando a discussão da validade de filmar o ponto de vista do policial que o filme de Calmon de 1979 punha violentamente em xeque? Padilha não conta com a desfaçatez do falecido Jece Valadão (impecável no filme de Calmon) para uma mensagem declaradamente policialesca. E os tempos são outros: a ousadia de Calmon em defender os torturadores numa época em que ainda estávamos sob a ditadura militar, e vozes libertárias clamavam pela abertura política mais ampla. Hoje, diante da violência generalizada, fica mais fácil aceitar a repressão policial violenta como (vamos lá!) um mal necessário.
Padilha não é um reacionário de direita, embora Tropa de elite seja um filme mais à direita, captando certos sentimentos sociais muito presentes. Comparemos. A seqüência do treinamento dos policiais, a voz autoritária e gritona do capitão, a intransigência com os cochilos humanos dos subordinados, a exposição do indivíduo à suprema crueldade como comer à maneira de cães a comida despejada no chão. É uma seqüência inspirada na primeira parte de Nascido para matar (1987), do norte-americano Stanley Kubrick. Diferenças. Por trás da cena de Kubrick, uma cabeça crítica antibelicista. A imagem de Padilha é diferente, documenta a cena como se estivesse se lambuzando da loucura toda. Um filme belo e nojento?
Por
Eron Fagundes