22 de novembro de 2006
Ver A última noite (A Prairie Home Companion; 2006), de Robert Altman, é uma volta no tempo cinematográfico, é topar com o cinema tão lúdico quanto crítico que este grande realizador norte-americano passou a pôr na tela desde Os delinqüentes (1957), um típico drama social americano dos anos 50, até atingir a perfeição de seu estilo de filmar em Cerimônia de casamento (1978). Altman é um dos poucos cineastas onde o prazer do espetáculo fílmico (aquilo de sensorial que o cinema tem) não impede a contundência crítica de sua visão de mundo. E A última noite ilustra esta fusão dos sentidos com a razão de maneira notável: a habilidade única de Altman para as grandes movimentações de personagens (ele tem seus seguidores, mas ninguém consegue fazer-lhe cócegas nos pés) se estrutura admiravelmente ao longo de A última noite, fazendo com que a perplexidade inicial do espectador logo se esclareça, como uma clareira no centro de uma floresta cerrada.
O assunto de Altman é a inesquecível breguice dos velhos programas de rádio, com os cantores country (no Brasil, seriam os sertanejos) e do auditório pelo espaço teatral onde se davam as gravações radiofônicas. E Altman capta este universo com absoluto distanciamento crítico e uma lucidez de olhar que espanta o observador acostumado com outros processos cinematográficos. Altman sabe valer-se dos aspectos do rádio que serviram a bases da linguagem de cinema. O rádio está tanto na altissonante voz barroca de Orson Welles em Cidadão Kane (1941) quanto na sisudez de novela esquemática de Gilda Abreu em O ébrio (1946). Woody Allen valeu-se da nostalgia dos sons do rádio para montar um de seus melhores filmes, A era do rádio (1987). Altman faz do universo do rádio um aliado de mais um de seus filmes-nave.
Demais, o coloridíssimo estilo narrativo de Altman se expande para uma riqueza de elenco que nos brinda com Woody Harrelson, Tommy Lee Jones, John C. Reilly, Lily Tomlin. E, como centro de tudo, esta impagável Meryl Streep, a estrela admirável de O diabo veste prada (2006), de David Frankel, convertendo-se numa intérprete de rara sensibilidade nas mãos de um mestre como Altman.
Outro dado curioso é que Altman utiliza como materialização da morte uma jovem loira, bonita, sorridente, bastante longe, pois, da figuração sombria que a morte tem em O sétimo selo (1956), do sueco Ingmar Bergman. Enfim, A última noite me faz questionar quem é quem hoje no cinema americano; se me perguntassem, eu diria que há dois cineastas diante de quem eu me ajoelharia: Altman e Terrence Malick. Mesmo que esta observação possa despertar a ira dos que preferem Martin Scorsese (embora talvez ele esteja longe de sua melhor forma hoje em dia), Francis Ford Coppola (que há décadas não faz um bom filme) ou Brian De Palma (cujos melhores filmes são belos exercícios formais sem vida própria).
Por
Eron Fagundes